segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A legitimidade do voto nulo: fuga da "dialética negativa"

        

Meu respeito àqueles que votarão nulo, certamente não é um voto neutro, nunca foi, assim como não é simplesmente indiferente, confortável ou irresponsável. É um voto legítimo como qualquer outro, assim como não votar deveria ser, afinal, cidadania não se cria ou se resume ao voto, é uma construção consciente baseada em lutas, resistências e conquistas por direitos.

Como sugere Bruno Cava Rodrigues, em um contexto de bloqueio democrático e aparelhamento generalizado do Estado não há razão para votar nas opções apresentadas. "PT e PSDB têm diferenças mas não são forças independentes, não existiriam com a força que têm, se não existisse a contraparte. Existe um processo dialético da representação em que PT e PSDB estão enxertados, um se alimenta do medo do outro, e com uma definição negativa compensam o vazio da representação sobre o que se equilibram em primeiro lugar. Em suma, um se identifica como o não-outro, e assim eles repetem o idêntico do problema que disputam"

           Certamente existem implicações no âmbito da política interna e externa dependendo de quem ganhar, contudo, não precisamos escolher fatalmente entre "o mal menor" e o "mal maior", entre o bem e o mal, entre dicotomias que, para além dos conflitos, se constroem reciprocamente. Ora, existem outros caminhos igualmente válidos! Como sugere Marcelo Seráfico
, o objetivo do debate político é sobretudo esclarecer e não denegrir. Acrescentaria que o debate político visa complexificar e enriquecer o debate sobre o futuro de uma cidade, região ou nação  e não simplificá-lo e reduzi-lo a "memes fáceis" como salienta Luiz Fernando Souza Santos


"Não se vota no menos pior, busca-se construir alternativas. Voto deve ou deveria ser algo consciente, feito com a intenção de melhorar o país e não na base do medo, na base do "não tem tu, vai tu mesmo".

Se não há uma opção viável, temos de nos preparar para a luta contra quem quer que vença e não FAZER CAMPANHA para alguém ruim apenas pelo medo de outros.

Nós não temos que escolher quem será nosso algoz. Temos de lutar contra quem quer que o encarne" Raphael Tsavkko

Dimensões da crise de 2008 em Harvey, Boaventura, Touraine e Bauman



Mais alguns pontos registrados na minha dissertação que ainda acho pertinentes.

Este breve ensaio, que  busca apreender algumas dimensões da crise deflagrada em 2008 nos EUA e que depois se irradiou pela Europa. Não possui a intenção de realizar um balanço crítico de todas as proposições teóricas ou posicionamentos políticos dos autores, objetivo que não caberia nos limites desse texto. Embora em algumas ocasiões sejam realizadas críticas e apontadas insuficiências analíticas, o horizonte do texto é o de sinalizar convergências nas análises dos autores abordados, especialmente no que se refere a 1) natureza da crise e implicações sociais 2) Os limites do Estado-Nação e sua soberania, 3) Crise dos partidos políticos e da democracia 4) Saídas para crise e reinvenção da política.  Os autores que tomaram como objeto a crise foram David Harvey (2011), Boaventura de Souza Santos (2011), Alan Touraine (2011) e Zigmunt Bauman (2010. Considerando que os efeitos dessa crise do capitalismo se faz sentir até hoje, especialmente na Europa que padece de problemas econômicos, sociais e políticos, é importante sumariar brevemente algumas dimensões de sua razão de ser e alguns de seus efeitos.



1)      Natureza da crise e implicações sociais.



Antes de tudo é fundamental apontar o seguinte; todas as explicações sobre a crise, para além dos aspectos conjunturais, inscrevem suas proposições tomando o mundo, o globo como ponto de análise essencial, daí convergirem na constatação de que a natureza da crise é global e possui uma dimensão sistêmica. O cenário de análise, portanto, toma o fenômeno da globalização como uma realidade concreta, imprescindível para se entender os dilemas e movimentos do mundo contemporâneo.

O ponto de convergência central das análises quanto a este ponto diz respeito a constatação de que a crise ainda em vigência está intimamente ligada ao modo como o capitalismo vem se desenvolvendo nos últimos três decênios. Harvey e Santos foram mais bem sucedidos no detalhamento  desse processo.

 Harvey aponta  que  a deflagração da crise foi mais um momento de bloqueio para realização do capital, do lucro, e que sua dimensão mais específica é o fato da mesma ser fictícia, isto é,  se originou no mercado financeiro especulativo  a partir de inovações financeiras (a exemplo dos subprimes)  possibilitadas pelas tecnologias da informação que também conectaram on-line os mercados mundiais (“Big Bang”). Outro ponto importante de sua análise quanto a natureza da crise é o fato de ter sido potencializada pelo projeto neoliberal em curso desde final dos anos 80, cujo objetivo era deixar o mundo livre às leis do mercado, facilitando a circulação do capital e simultaneamente avançando no controle do trabalho organizado. A crise, na sua perspectiva foi o ápice de um padrão de crises financeiras iniciadas na década de 1970 e, além disso, representa mais um momento de racionalização das irracionalidades do capitalismo.

Santos, para além de sinalizar os elementos nacionais e regionais da crise,  assim como Harvey, inscreve sua análise nas nuanças que o capitalismo global em sua fase neoliberal tem operado no sentido de se tornar hegemônico e “disciplinar” os países às suas leis do mercado financeiro. Para Santos a natureza da crise se vincula a arma de destruição do neoliberalismo: o  mercado financeiro, este não apenas procurou se distanciar das demandas concretas da produção econômica como tornou-se hostil a democracia e a socialização da economia. Deste modo, Harvey e Santos, apesar de caminhos e formações intelectuais distintas, chegam a uma conclusão semelhante. Realizaram, reitero, um esforço no sentido de uma análise critica e sistêmica da crise em contraponto a interpretações unidimensionais, geralmente associadas ao pensamento neoliberal dominante.

Quanto a Touraine, podemos dizer que sua interpretação sobre a crise é também uma interpretação daquilo que a crise acelera; da  falência da sociedade industrial e seus atores com a simultânea emergência de uma  “nova sociedade” assente em princípios, sobretudo, culturais. Mas, para além dessa dimensão de transição Touraine, assim como Harvey e Santos, atribui uma centralidade aos processos de globalização econômica de caráter neoliberal no desencadeamento da crise.

 Essa crise, segundo o  Francês, que acelera uma “separação entre ator e sistema”  está relacionada a ruptura entre os processos de globalização econômica e sua dimensão financeira com os atores e instituições locais e nacionais que se encontram limitados politicamente para fazer face aos poderes de uma economia globalizada. Essas rupturas correspondem igualmente a separação entre capitalismo financeiro e economia ‘real’ potencializados segundo o autor pelo capitalismo Americano e Inglês. Quanto a este último ponto vale salientar que não apenas Touraine, mas Santos e Harvey, apontam, para além da natureza global da crise, que os EUA são os maiores responsáveis pelos seus desdobramentos mundiais.

Já para Bauman, a natureza da crise não foge muito das explicações precedentes, isto é, está assente nos marcos do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. Para Bauman, a crise atual não é apenas o resultado das inovações financeiras dos bancos, é o próprio sucesso de um momento fabuloso de um capitalismo à crédito que transforma cidadãos em consumidores vorazes, que tendem reproduzir o capitalismo a partir de suas dívidas contraídas por crédito fácil. Bauman não faz alusões diretas ao neoliberalismo, nem se dedica a explicar a financeirização da economia, mas conclui, assim como Harvey, que a crise é de bloqueio para realização do capital e que evidencia mais um momento em que o mesmo vai se articular para conseguir “novos pastos” para “parasitar”.

Além disso, vale destacar que todos os autores de modo mais contundente ou de maneira indireta, apontaram como elemento facilitador e até indutor da crise, um modo dominante de se perceber e interpretar a crise, que condicionou igualmente os caminhos apresentados para sua resolução. Esse modo dominante de interpretação sofreria, segundo Santos, de um déficit explicativo, “tomando como específico o que é sistêmico”. Harvey, por sua vez, apontou uma percepção muito estreita da crise por parte de uma geração de intelectuais e, sobretudo, de economistas (quase matemáticos) que esqueceram Keynes e desprezaram Marx. De modo menos contundente Touraine argumentou que o esgotamento das interpretações da sociedade atual foi uma das principais causas da crise. Por fim, Bauman sugeriu que a deflagração da crise esteve associado a um modo de pensar e agir dominantes que não estavam limitados às elites econômicas ou segmentos intelectuais, mas estavam encravados na mentalidade das pessoas comuns, qual seja, o pensamento segundo o qual se poder conseguir e comprar tudo agora e resolver depois, trata-se em suma, do que Bauman caracteriza como vida à crédito, um modo de pensar e viver que se utilizar de cartões e créditos fáceis para reproduzir uma existência na base de dívidas eternas.

No que se refere aos desdobramentos sociais desencadeadas pela crise podemos destacar o seguinte.

Verifica-se a partir de todos os autores, sem exceção, que a crise econômica e financeira tem sistematicamente desmantelado o que se denominou por Estado de bem estar social, um conjunto de direitos e instituições que garantiam as “condições de prosperidade da população”

Como bem destacou Bauman, o capitalismo parasitário não pode continuar sua exploração – extração de valor - sem prejudicar  seu hospedeiro, destruirá , cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou  mesmo de sua sobrevivência. As condições de prosperidade estão relacionadas a níveis suportáveis de igualdade, justiça, liberdade oferecidos por um Estado social forte.

Acentua-se enquanto desdobramento social da crise aquilo que Bauman chama de “danos colaterais”, as ações imprevistas, não pensadas, ou mesmo tidas como não importantes em suas ações e elaboração de planos, projetos, programas.

Esses danos colaterais se potencializam em momentos de crise e seus impactos atingem imediata e particularmente os “dejetos da ordem”, o “refugo da modernização”, em outras palavras, os efeitos explosivos e indiretos da crise e da globalização afetam as classes mais baixas, o pólo pobre da reprodução e criação das desigualdades. Vale registrar que nos últimos anos esse impacto não previsto tem atingindo abruptamente não apenas o “refugo”, mas a classe média tradicional e ampla parte de uma juventude, inclusive, bem formada.

Bauman salienta que a “a aventura das ‘hipotecas subprime’, multiplicaram em milhões o número de pessoas sem casa, “com a epidemia de retomada de imóveis”. Harvey registra também o despejo de milhões de pessoas, sobretudo, de classes baixas operado pelas instituições que lhes concederam ‘crédito fácil’, além disso, realça que em termos sociais  a  crise evidencia um ataque frontal do capital em relação ao trabalho, expresso especialmente no aumento da pobreza e desigualdade nos EUA e no  desmantelamento do já reiteradamente atacado modelo social Europeu.

Quanto a essa dimensão social Santos dá especial atenção para “a desmedida das medidas de austeridade recessiva” que resultam em “aumento dos níveis de desigualdade e pobreza de par com o aumento da discriminação”, solo fértil para a proliferação dos fascismos sociais. Anota  ainda, que  o aumento da pobreza é o impacto social mais previsível das medidas de austeridade, mas o seu significado político decorre de estar ligado ao desmantelamento da já frágil classe média. Somado a isso e, de maneira geral, ocorre o endividamento das famílias, aumento do desemprego , da economia informal, juntamente com a erosão dos direitos trabalhistas. Sua ênfase é a destruição da sociedade-providencia  causada pela crise, expressa em cortes nas despesas sociais do Estado, na acentuação da crise no mercado de trabalho, cortes nas reformas e pensões.

Por fim, ainda que de modo mais abstrato, Touraine fala das implicações sociais da crise, da acentuação da pobreza, desigualdade, problemas étnicos e de surtos de nacionalismos e protecionismos. Mas no geral, as implicações sociais da crise segundo o autor estariam relacionadas a  “decomposição dos atores sociais” da sociedade atual, vale dizer francesa.

No limite, todos convergem quanto ao desmantelamento do Welfare-estate realizado pelo capital para atenuar seus prejuízos e com exceção de Bauman, todos apontam que as medidas da troika (Banco central Europeu, Fundo Monetário Internacional e União Europeia)  tem dificultado uma saída socialmente saudável dos países europeus da crise, ao contrário ela tem acentuado os problemas sociais e as dívidas do Estado através do planos de austeridade que solapam os direitos dos trabalhadores conquistados às duras penas. Trata-se da socialização dos prejuízos gerados pela crise na medida em que -  como veremos adiante - o Estado salva os rendimentos do capital se endividando e simultaneamente maltratando econômica e social as populações com seus programas de austeridade.

Podemos resumir, que do ponto de vista social a crise explicita e acentua o lado negativo (desemprego, pobreza, desigualdade, conservadorismos, fascismos, preconceitos), e indireto (efeitos e “danos colaterais”) do laissez-faire global. Considerando os efeitos sociais da crise no contexto europeu concordamos com Santos (2011) quando afirma que o continente europeu está a assistir o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, acentuando dilemas ou criando problemas tidos como resolvidos e presentes apenas em países considerados “subdesenvolvidos”.



2)      Os limites do Estado-Nação e sua soberania.



O Estado-Nação vem sofrendo abalos e redefinições de longa data, desde seu nascimento no âmbito da modernidade, não obstante, seus impasses se acentuaram em tempos de globalização do capitalismo, especialmente de sua esfera econômica e financeira. Tais impasses se intensificaram com a crise e seus desdobramentos que atingiram fortemente os EUA e a Europa, obrigaram seus Estados a posturas ambivalentes quanto a resolução dessa crise. Vamos aqui nos deter nos argumentos que Harvey, Bauman, Touraine e Santos apresentam para explicar o posicionamento dos Estados-Nação diante do desafio que a crise representa.

Sobre este ponto Harvey é categórico ao afirmar que o Estado tem assumido, desde as crises da década de 80, como a do México, uma postura política de se mobilizar e mostrar seu poder para salvar instituições financeiras à revelia dos males que isso pode causar a nação e ao seu território.

Essa atitude do Estado, segundo Harvey, deriva do que ele denomina “nexo Estado-Finanças”, um mecanismo que não se importa com espaços geográficos ou sentimentos de pertencimento, seu objetivo é tão somente gerir os aparatos do Estado para criação de capital e fluxos monetários. Retomando argumentos já apresentados, é precisamente através desse  “nexo” que ao  “ longo da história do capitalismo muito esforço tem sido posto, na redução do atrito de distância  e dos obstáculos à circulação”, afinal, se os obstáculos se toram instransponíveis “, podem  produzir uma crise (definida como uma condição em que os excedentes de produção e reinvestimentos estão bloqueados)”, pois,  “se o crescimento não recomeça, então o capital superacumulado se desvaloriza ou é destruído.  Nesse sentido, Estado e capital são lados de uma mesma moeda e objetivam criar segurança para criação e circulação do capital. Território, nação, democracia e soberanias nacionais em um mundo globalizado não garantem apenas segurança para o capital, mas igualmente limites para sua reprodução.

Bauman assume uma posição semelhante a de Harvey quando afirma que em todas as mutações pretéritas do capitalismo, o Estado também participou efetivamente no sentido da “criação de novos pastos a explorar”,  dando como exemplo o fato de que foi durante o governo Clinton que as hipotecas subprime foram introduzidas, a fim de conceder crédito fácil para compra da casa própria, à pessoas sem condições de pagar a dívida assumida. Quer dizer, o próprio Estado é responsável em transformar setores da população em endividados explorados pelas instituições de crédito.

Constata-se, portanto. que o Estado teve influência decisiva na deflagração da crise, e  as “saídas” que escolhe para salvar o país, nesse momento tido como Nação, apenas consagra o poder dos ricos e do capital, não é por ocaso que Bauman denominou esse tipo de Estado de  “Estado assistencial para os ricos”. Mas esse tipo de atitude estatal não é novidade, pois, segundo Bauman, a cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção.  Em geral as políticas do Estado capitalista. ‘ditatorial’ ou ‘democrático, são construídas e conduzidas  no interesse  e não contra o interesse  dos mercados. E no mesmo sentido da análise, Harvey aponta, que o principal efeito dessa postura do Estado, embora não abertamente declarado é avalizar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado.

 Daí que a livre circulação do capital pelo território, seja especulando ou deixando seus prejuízos sociais a nação, é aceita com naturalidade pelo Estado, ainda que alegue fervorosamente que não deixará ninguém sair impune. Os limites políticos para o Estado regular o capital nos limites de seu espaço se assenta no fato de que essa regulação poderá engessar suas próprias ações enquanto Estado. A política de arrecadação estatal globalizou-se e não pode restringir-se ao seu território nacional, o que consequentemente implica em aceitar o capital transnacional caminhar por suas terras, sob o risco de estagnar-se no cenário global e inscrever seu país num protecionismo econômico de consequências não previstas.

Touraine, ao contrário de Harvey e Bauman, não apresenta diretamente a ambivalência do Estado diante crise e como Estado e Mercado estão imbricados, mas não economiza em sua crítica; simplesmente argumenta que o Estado não tem nada em comum com seu homólogo de 1936 e com o New Deal, que inclusive, “já não pode mais ser apresentado como uma peça central do sistema democrático representativo, pois vai de mal a pior”. Diante da crise, o Estado tem sido capturado pelo capital financeiro internacional e não tem conseguido o mínimo de legitimidade para continuar funcionando. A troca de ministros na Europa entre 2009 e 2013 é um indicativo disso.

Além disso, entrevemos da análise de Touraine que o Estado forjado no âmbito da sociedade industrial está desaparecendo, se separou da nação, que o primeiro se subordinou ou se aliou aos movimentos da globalização econômica e, o segundo, se encontra limitado em seu espaço enquanto sociedade política sem poder para interferir nas políticas macroeconômicas (cambial, fiscal etc) e, de modo, geral nas soluções para viabilizar uma saída para crise. Isto é, os capitais financeiros tem a liberdade não só para adentrarem o Estado-Nação e especularem, mas podem inclusive levar países a  bancarrota e sair sem qualquer prejuízo ou responsabilidade pelo ocorrido.

Por fim, Santos  realça, assim como Touraine e Harvey (nos EUA), que os governo Europeus se deixaram sistematicamente capturar pela avidez do neoliberalismo e “da sua arma de destruição massiva, o capital financeiro, a forma de capital mais hostil à deliberação democrática e à socialização da economia”. Trata-se de um poder que não respeita fronteiras e nem soberanias, mas ao mesmo tempo está vinculada aos Estados Nacionais.

Esse poder, para Santos, é o responsável pelo fim do estado como indutor de mobilidade social, fim do Estado- providência, expressa em certo sentido o próprio colapso da nação e sua ruptura informal com o Estado; informal porque formalmente as relações existem e presidem os processos de deliberação ditos “democráticos”. E assim o Estado se separa da Nação, em outras palavras, o casamento Estado e sociedade  está em crise, o que será assinalada em tópico seguinte.

É diante desse quadro, de crises, rupturas e indistinção entre Estado e Mercado que as noções de soberania e nação precisam ser redefinidas, reformuladas no sentido de tornarem-se inteligíveis nos marcos de um mundo em intenso processo de globalizações. Podemos afirmar, se ancorando em Ianni, (2004) que esse é contexto que “se cria e recria a nação, compreendendo a sociedade e o Estado, o território e a fronteira”. Se a nação se formou  principalmente no contexto do liberalismo, transforma-se drasticamente no contexto do neoliberalismo.  Sobre este ponto, as análises sobre a crise apresentadas neste trabalho apontam esse horizonte, que 



No âmbito do neoliberalismo, o Estado-Nação entra em crise, é levado a redefinir-se.  A dinâmica da globalização exige a reestruturação do Estado, a privatização das empresas produtivas estatais, da saúde, da educação, transporte, habitação e previdência. Assim se modifica, ou mesmo rompe, a relação entre o Estado e a sociedade. (IANNI, 2004:321)



Outra implicação marcante no contexto da crise causada pelas consequências neoliberais especialmente de caráter financeiro, é o fato de  Estado se tornar mais rearticulado “ às exigências e às possibilidades da globalização do capitalismo”, ao mesmo tempo que “amplos setores da sociedade civil dinamizam-se no sentido do nacionalismo, compreendendo o território e a fronteira, a história e a tradição. É Diante de tal cenário que,



Os indivíduos e as coletividades são desafiados a reposicionarem em face de um Estado cada vez mais divorciado das suas inquietações e ambições.(..) Rompem-se algumas das articulações que conformavam todo Estado e sociedade, ou Estado-Nação (IANNI, 2004:321)



2.1) O PAPEL DO ESTADO E A REGULAÇÃO DA GLOBALIZAÇÃO

           

            Prolongando o debate acerca do tópico precedente, podemos afirmar que os impasses e dilemas do Estado nacional são fontes riquíssimas para desmistificar um debate (o qual não vamos nos deter aqui) acerca dos limites e do papel do Estado no âmbito dos processos de globalização.



Encontramos no interior das leituras realizadas tantos análises que admitem a inexorabilidade dos processos de globalização atingindo e enfraquecendo a autonomia dos Estados no sentido de soberania nacional, quanto análises que tentam evidenciar que os Estado ainda são fonte política de resistência e alternativa face à dinâmica global do mercado. Contudo, acreditamos que esses posicionamentos se mostram insuficientes para apreender as dinâmicas complementares entre Estado e mercado no quadro da globalização e dos processos de financeirização. Apontamos aqui um postura intermediária

Nota-se  que o debate Globalistas x nacionalistas apresenta-se como polarização infértil que deve ser abolida; tanto existem processos concretos de globalização (para além das ideologias imperialistas e neoliberais que capitalizam seus processos), aliás globalizações, como existe ainda poder e resistência dos Estados para se redefinirem frente a esses processos, não considerando-os como simples correia do capitalismo financeiro-global, entidades que estariam fadados ao fracasso na medida em que sua soberania seria completamente usurpada pelos poderes e instituições globais. Certamente uma situação pós-neoliberal já se delineia, apesar das resistências, contudo, de um lado, nem a globalização vai desaparecer e tampouco o Estado recuperar sua autonomia face as grandes corporações, mercados financeiros e instituições supranacionais e, de outro, seu papel de regulador econômico e integrador social muda de modo significativo.

 A perspectiva é que daqui em diante, como aponta Cocco (2012) na esteira de Negri (1999), o futuro do papel do Estado será cada vez mais ambíguo entre as instituições nacionais(e seus objetivos) e supranacionais, exceto no caso dos Estado norte-americano enquanto “ nação cujos interesses correspondem quase inteiramente aos densos do mercado mundial”. Posição privilegiada que a meu ver tem sofrido grandes abalos seja pelas condições internas do país com aumento do desemprego e crise fiscal, seja externamente pela relativa mudança em curso da geopolítica e geoeconomia mundial com destaque para os BRIC’S, especialmente da China, no sentido de redefinição dos espaços e instituições que deliberam acerca dos impasses políticos e econômicos que caracterizam as relações interestatais.

            A questão está em como regular a globalização, ou melhor a globalização hegemônica, imperial, financeira. Esta regulação passa necessariamente  pela democratização dos processos de globalização em nível sistêmico, isto é, no aprofundamento de outras globalizações, globalizações contra e alter-hegemônicas. Enfim, trata-se de viabilizar a mundialização de outras relações, processos e estruturas que estejam assentes em princípios não monetários, financeiros, mercantis, os quais legitimam a supremacia do valor de troca em cima do valor de uso, que priorizam o mundo dos objetos em detrimento do mundo da vida, que reduzem a qualidade de viva ao bem-estar material à revelia do bem-viver expresso em amizades, afetos, reciprocidade, amor.



3)      Crise dos partidos políticos e democracia deslegitimada.



A democracia não apenas  encontra-se em crise nos EUA e Europa, mas parece que o capitalismo não simpatiza mais com a mesma, apenas sob a condições de torná-la serva dos seus interesses. Vimos a derrubada dos governos democráticos e eleitos na Grécia e na Itália, e simultaneamente se realizaram  a nomeação de governos tecnocratas, que deveriam ser neutros  e cuidar somente de aspectos ‘técnicos’ relativos a economia, no entanto, estão lá para cumprir a vontade do grande capital financeiro e seus agentes (bancos, agências de classificação, especuladores etc.). Vejamos  o que podemos extrair dos autores acima elencados sobre a questão em pauta.

Começemos por Touraine, que durante o desenvolvimento de seu livro chamou atenção diversas vezes para a falência das instituições, formas de ação e representações tradicionais para fazer face aos dilemas que a sociedade contemporânea tem enfrentado e que se agudizam em tempos de crise.

De acordo com Touraine, na Europa os partidos de esquerda provaram sua impotência diante da crise, a esquerda não somente se enfraqueceu no que se refere as reivindicações salariais, mas igualmente não soube interpretar adequadamente a crise europeia. Em um dos cenários traçados por Touraine a respeito do futuro que a Europa pode ter, sinaliza o fracasso dos partidos e sindicatos impossibilitados de realizarem mudanças significativas em um cenário onde o capitalismo sofreu uma grave crise, mas se reergueu rapidamente. Esse é o cenário onde os eleitores não saberiam “diferenciar a esquerda da direita” ao mesmo que se instala um silêncio social inesperado, onde as próprias vítimas da crise podem “anunciar a formação de um movimento violento”. Aproximadamente um ano após o lançamento de seu livro (2009) um conjunto de manifestações mais ou menos espontâneas foram realizadas pelas “vítimas da crise” e algumas com o caráter mais ou menos violento, é o caso das destruições realizadas por jovens em Londres.

            Diante da crise temos o fracasso das instituições tradicionais e a própria morte da idéia de luta de classes  assinala Touraine. Nem direita, esquerda ou social-democracia, nada disso, para o Francês a crise acelera a decomposição das categorias, idéias e os atores da sociedade industrial

Diante dos paradoxos gerados pelas implicações da crise Santos pergunta “se estamos perante dois mundos diferentes ou se a social-democracia desertou da Europa e emigrou para o Brasil.” Essa pergunta expressa uma dimensão de sua análise relacionada aos sucessivos fracassos dos partidos políticos não somente em Portugal mas na Europa como um todo. Os partidos, em sua análise, encontram-se com sérias dificuldades para interromperem o processo de destruição do Estado de bem estar social Europeu.

Santos destaca que durante o século XX,  a social-democracia e o horizonte utópico comunista por exemplo serviu como  corretivo  para modelo social europeu, o Estado Providencia e o direito laboral. Tratou-se de uma forma “corrigir” o capitalismo e mantê-lo com algum nível de racionalidade. Não obstante, com o desgaste das experiências socialistas mal-sucedidas o capitalismo se viu sem inimigo credível e um dos resultados imediatos foi o enfraquecimento da social-democracia após a queda do muro de Berlim. Sem esse adversário a social-democracia colapsa e o capital vampiriza sem freios o trabalho e os novos ‘pastos’ para realização do lucro e da acumulação capitalista.

Para Santos a crise acentua o desgaste e falta de legitimidade dos partidos tradicionais, lembrando que a nova geração de portugueses, denominados ‘ a geração à rasca’, experimenta um momento de incerteza e futuro incerto. Até agora essa “geração esta divorciada dos sindicatos” e um quanto descrente em relação aos partidos. Parte do fracasso desses Santos atribui ao fato de os mesmo não terem incorporado de modo claro e eficaz as demandas, interesses e lutas dos novos movimentos sociais a exemplo do feminismo, do movimento de gays e lésbicas, movimento ecológico, entre muitos outros.

O fracasso dos partidos se realiza simultaneamente ao enfraquecimento continuada da democracia, que aos poucos perde legitimidade, na medida em que, como destaca Santos, a população percebe que ela não atende suas demandas e está refém, assim como os políticos e partidos, do capital financeiro.

Harvey, quanto a este ponto é bastante incisivo, indicando não exatamente o colapso das instituições ou partidos tradicionais mas sugerindo a supremacia de alguns setores e partidos. A esse respeito comenta que não foi coincidência que o ‘’Partido de Wall Street’’ tenha tomado o poder, tato no Congresso quanto no Executivo? E por que os mais ricos enriqueceram imensamente em todos o lugares, desde a Rússia e o México até a Índia e a Indonésia? Para Harvey não há uma crise generalizada dos partidos tradicionais,  republicanos e democratas. Ocorre que o partido do capital, o partido das elites financeiras está com demasiado poder em suas mãos ao mesmo tempo que a organização da classe trabalhadora em grande parte da Europa e mesmo nos EUA que era relativamente forte, tornou-se em boa medida subservientes aos interesses do trabalho organizado.

O fracasso dos partidos de esquerda para Harvey estaria relacionado ao seu erro em “ignorar os movimentos que ocorrem fora das fábricas e minas”, afinal de contas “A consciência de classe é produzida e veiculada tanto nas ruas, bares, pubs, cozinhas, capelas, centro comunitários e quintais dos subúrbios da classe trabalhadora como nas fábricas.

O problema ao seu ver é que a classe trabalhadora e os partidos de esquerda não conseguiram se firmar nos últimos tempos como um “sério obstáculo para a continua acumulação do capital”. Não é a toa que o intelectual americano vai registrar que a maneira como essa barreira foi controlada pelo capital com a ascensão do neoliberalismo durante os anos 1970 e o inicio dos anos 1980 define em muitos aspectos a natureza dos dilemas que enfrentamos agora.

Embora Harvey não trate diretamente da questão democrática, entrevemos em sua análise que a democracia forjada no âmbito do capitalismo é uma pseudo-democracia, uma democracia de poucos. O que temos ao seu ver é uma plutocracia que destrói o bem-estar social das massas em compasso com a preservação e aumento da riqueza e  poder dos já ricos.

            De maneira geral o tom das análises é basicamente de descrença quanto a possibilidade dos partidos tradicionais, se não se renovarem rapidamente, de construírem caminhos e alternativas que limitem o capital financeiro e restitua o valor da democracia, altamente deslegitimada perante a população que anseia por formas de participação direta. É precisamente por isso, como veremos adiante, que as saídas para as crises e não somente a crise econômica,  passam necessariamente por uma reinvenção da política que tome como ponto de partida os anseios e necessidades da multidão de pessoas indignadas com o sistema político e econômico vigentes.



4)      Saídas para crise e reinvenção da política



Em Santos e Touraine as medidas para saída da crise passam imediatamente pela radicalização da democracia em todas as esferas.

Santos indica que a saída para crise pode ser através de um corretivo eficaz, tal como feito pela social-democracia no passado ou por transformações profundas que podem mudar a lógica do sistema e criar um novo modo de organizar a política e  a sociedade.

De acordo com o autor (p.19) , as crises podem ser resolvidas ou por corretivo eficazes  que, que não precisamente põem em causa a lógica do sistema que provocou a crise, mas conseguem minimizar os ritmos e os custos sociais desta, ou por via de transformações profundas  que visam mudar a lógica do sistema e criar um novo paradigma de organização social e política.  As primeiras representariam soluções institucionais e as segundas soluções extrainstitucionais e, por conta disso, a resolução corretiva é sistêmica e a resolução  profunda é antissistêmica. Santos informa que  “as periferias da Europa ilustram hoje o recurso aos diferentes tipos de soluções” pois no presente  momento, “a periferia interna tenta resolver as crises  por via de soluções institucionais, enquanto a periferia externa recorre a soluções extrainstitucionais na busca de uma nova institucionalidade”. Diante desse cenário, para Santos, o que importa é a radicalização da democracia em âmbito local, nacional e global pois como já salientado anteriormente o que importa é a politização da crise, sua redefinição prática da crise, que dependerá da globalização contra-hegemônica, prescrita no atendimento dos imperativos democratizar, descolonizar, desmercadorizar. Em outras palavras, a saída da crise se inscreve na potencialização de processos de globalização contra-hegemônica, prolongando no tempo movimentos e ideias já afirmados pelos Zapatistas em Seatle e no Fórum Social Mundial para ficarmos apenas nesses exemplos.

Touraine, por sua vez, ao final de seu livre se rende ao discurso de que o mais importante em um contexto de crise é o aprofundamento da democracia para evitar os abusos da dimensão financeira, não obstante, a superação da crise para o autor estaria no que ele denomina de “direitos universais do sujeito humano”, que poderia “estancar a destruição da vida social pela economia globalizada. Como já salientado anteriormente, alega que essa tarefa não pode ser realizada por uma revolução e , menos ainda pelas reformas que propõem as sociais-democracias, ela só pode ser bem conduzida pelos militantes e pelas figuras exemplares organizadas não verticalmente – e aqui se distancia de partidos e os sindicatos - “mas horizontalmente, pela união pública e pelos atores informados principalmente pela mídia e pela internet e decididos a não deixar que tome forma um novo poder mais autoritário ainda que o poder antigo.”

A este respeito Bauman e Harvey reiteram e potencializam o que já estivera explícito e implícito no desenvolvimento de seus argumentos.

Não me deterei aos argumentos de Bauman para não se tornar maçante e repetitivo, já que em tópicos precedentes já foram desenvolvidos os argumentos que sinalizam sua resposta para o presente tópico. Basta enfatizar o seguinte, que para Bauman a saída de uma crise, que não queira imediatamente criar outra crise, deve necessariamente passar pela mudança cultural dos modos de vida das sociedades, da maneira como se reproduzem, consomem e se relacionam. De par com isso sugere que já que os problemas são resultante de determinações globais, nada mais prudente do que fortalecer instituições, organizações e associações globais cosmopolitas que façam frente e regulem “ laissez-faire global”.

Harvey talvez seja o que mais se dedicou entre os autores aqui selecionados para pensar possibilidades e ações para escapar da potencialização dos prejuízos que uma crise prolongada pode causar, não obstante, não poderei desenvolver aqui seus argumentos sobre o processo que levaria uma saída completa da crise, pois significaria me deter sobre sua teoria “correvolucionária” de superação do próprio capitalismo. Em outras palavras, para Harvey, uma saída absoluta da crise resultaria em um saída do capitalismo, afinal de contas, capitalismo é crise em movimento e esse movimento tem como lógica a reprodução de espaços e existencias que dinamizem a circulação do capital e, quando essa dinâmica tem bloqueios para se realizar, crises agudas surgem como instrumento para  drenar mais capital, regular o trabalho, racionalizar o “irracional”.

Só para não ficarmos sem alguma indicação concreta sobre os caminhos para “sair” da crise na perspectiva de Harvey, vale dizer que para o autor as crises são momentos de paradoxos e possibilidades, que inclusive opções socialistas e anticapitalistas podem surgir com força. A potencialização de uma saída ou outra expressam sempre processos de racionalização das coisas, gentes e sociedade, e essa racionalização ou melhor sua direção, é o que vai caracterizar o vir a ser do capitalismo e das sociedades. Harvey reitera que em tempos de crises há sempre opções e que a escolha de uma ou outra vai depender da relação das forças de classes e das concepções mentais sobre o que poderia ser possível. Entrando em convergência com os argumentos de Santos sinaliza que o importante é a definição política da crise, pois é a partir da luta por essa definição que sairá as respostas. Essa luta para Harvey passa pela luta das concepções mentais de mundo que prevalecem na sociedade evidenciando que práticas e concepções mentais de mundo vinculadas a lógica do capital seguem crise após crise, inovando arquiteturas financeiras e institucionais para desbloquear os entraves para acumulação; gerando suas opções políticas para a ‘solução’ da crise, com  a socialização dos custos , privatização dos lucros e a devida preparação dos termos da próxima crise.

Trata-se, afinal de contas, de criar e reproduzir em grande escala outras concepções mentais de mundo que perpassem universidades, governos, mídias, de forma que se convertam em orientação central das pessoas enquanto senso comum dominante. No final das contas a luta é pela definição do mundo, da estruturação da  realidade; de como as coisas funcionam!

Por fim, vale registrar que a ruptura crísica  que os tópicos acima indicam, oportuniza pensar e por em prática outra política  e outro desenvolvimento,  estes não são apenas desejáveis e possíveis, mas se apresentam como a única saída realista para os impasses globais nos quais o mundo está inscrito.



BIBLIOGRAFIA



BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2010

COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direito na crise do capitalismo global. 3 edição. São Paulo: Cortez, 2012

HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011

IANNI, Octávio. Capitalismo, violência e terrorismo.RJ, Civilização Brasileira, 2004.

TOURAINE, Alain. Após a crise: A decomposição da vida social e o surgimento de atores não sociais.Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2011

SANTOS, Boaventura de Souza. Portugal: ensaio contra a autoflagelação. São Paulo: Cortez, 2011.

domingo, 12 de outubro de 2014

PT e PSDB: Equilíbrio de contrários?





A dialética do poder entre PT e PSDB lembra a noção de equilíbrio de contrários de Gilberto Freire, uma dialética sem síntese, baseada em uma relação tensa, mas que sempre se harmoniza através da justaposição dos contrários, da anulação das diferenças. É a reformulação da Casa Grande & Senzala em outros termos, é a democracia eleitoral pacífica; democracia dos consensos, alianças, conchavos, governabilidade. Nesta democracia os conflitos, as resistências e dissensos seriam apenas aparentes, resultados imprevistos de um povo emotivo e apaixonado que gosta de brigar, mas logo em seguida se reconcilia e vai comer pizza com seu objeto de crítica ou de oposição.

Nessa narrativa ou "invenção! não seria importante a marcação de diferença, isso não existiria  aqui, seríamos  todos iguais, posto que brigaríamos pelos mesmos objetivos, as divergências seriam de "superfície!. Assim como a “democracia racial” afirmou a positividade da relação entre negros e brancos entre nós, da mesma forma a polarização PTXPSDB representaria a positividade das relações entre as classes sociais.

Ora, é preciso dizer que PT-PSDB parecem irmãos siameses, um não respira sem outro, a derrota absoluta de um automaticamente anularia as condições de vida do outro. A dependência é tanta que não revezam apenas o poder, o discurso, as críticas e as práticas também sofrem rotações e complementos, tanto é que seus governos vistos em perspectiva histórica se complementam. Um segue e potencializa a política econômica do outro. Este promete “aperfeiçoar “ as políticas sociais daquele. Bestas somos nós que  muitas vezes brigamos, xingamos e  nos desqualificamos reciprocamente para manutenção do mesmo sistema político e seus irmãos siameses. Assim como socialismo não faz sentido sem capitalismo, da mesma forma PT não faz  sentido sem PSDB, ambos se construíram como polos antagônicos, mas que com o passar do tempo se tornam complementares e quiçá poderão desaparecer juntos um dia. Por enquanto, ambos prosseguem inexoráveis, afastando ou incorporando qualquer alternativa ou brecha democrática que coloque em risco a confortável dicotomia.

Outrora,  a afirmação ideológica da democracia racial (síntese harmônica entre raças) contribuiu , de um lado,para naturalizar relações de dominação (relações de poder) e exploração (relações econômicas) e, de outro, permitiu uma  costura modernizante para construção de um Estado-Nação homogêneo em que todos se sentiriam pertencidos, procedimento que se fez capturando politicamente elementos de várias expressões culturais simultaneamente à anulação de  diferenças, diversidades, epistemes de grupos e coletividades. A nação fora “inventada”, o mito erigido, mas longe de um país  homogêneo e sem conflitos o que existe é uma diferenciação pelos quatros cantos do país e com elas lutas por direitos e reconhecimentos.

Hoje a afirmação ideológica da única dialética possível (PTXPSDB) igualmente naturaliza e legitima os vícios, desigualdades, hierarquias e consensos perversos que estruturam o sistema político  e sua democracia representativa com poucos partidos hegemônicos. Fazem, produzem, inventam um imaginário político  no qual  não há outra política possível para além dessa polarização, quando na realidade o devir-político é muito mais rico, potente e diversificado do que essa vã binaridade crê. Muitas reinvenções contra-hegemônicas estão ativas e resistentes, outros modos de pensar,  fazer e compor as diversidades nacionais são possíveis.
           
Sim! Essa polarização reflete também o modo como a identidade nacional fora construída, como a multiplicidade e a riqueza brasileira fora reduzida, silenciada e traduzida ideologicamente em pares binários: Casa grande & Senzala, Sobrados e Mucambos , Elite e povo, Café com leite, casa e rua, Estado e Mercado. Esta última polarização é a invenção-mor  que conduz e simplifica o debate político em todo o mundo, como se não fossem faces da mesma moeda. Se é pra de afirmar se esquerda, que seja se afirmando  através  lutas e resistência contra os privilégios e , portanto, contra as injustiças e desigualdades, esteja quem esteja no poder, inclusive eu.

         Não se trata de negar as conquistas do PT e tampouco evidenciar que ele é igual ao PSDB (este texto registra diferenças pertinentes:aqui). Trata-se apenas de enfatizar que ambos constituíram-se reciprocamente e que tal constituição tem conexão com lógicas e representações que "inventaram" a nação e o pertencimento ao Brasil.