“Em 2013, a poeira debaixo do
tapete acabou por levantar o tapete, despindo a dominação de seu discreto
charme e sua altiva soberba” Bruno Cava
A multidão foi ao deserto é um livro que exala paixão pela resistência,
resultado da práxis de um “pensador-manifestante”
(p.9). A cartografia das lutas e microinsurreições é tecida em 20 textos; 2 entrevistas,
4 textos escritos em parceria e 14 que foram publicados inicialmente em seu blog
quadradodosloucos.com.br, espaço no
qual o autor articula literariamente o “campo das lutas e das ideias”, “produzindo
conhecimento nas lutas e para as lutas” (p.120), produto de co-pesquisa.
Se
a narrativa captura por dentro um evento inscrito no tempo e espaço,
contextualizado será igualmente os interlocutores que durante os acontecimentos
travaram debates analíticos e teóricos sobre os desdobramentos múltiplos das manifestações.
Parte da interlocução se realizou com os pesquisadores colaboradores da Universidade
Nômade ( UniNômade brasileira) entre os quais Giuseppe Cocco, Alexandre
Mendes, Hugo Albuquerque, Bárbara Szaniecki entre outros que mobilizam o
arsenal teórico e analítico do Filósofo Italiano Antonio Negri para pensar as
relações e processos insuspeitados que conformam as transformações do devir brasileiro e mundial.
Pensando o livro objetivamente pode-se afirmar que o mesmo exala política, política em sentido bruto; das formas pelas quais razões, interesses e afetos “selvagens” se convertem em resistências e lutas extra-institucionais face ao poder da ordem, poder constituído.
Trata-se de uma lúcida análise de conjuntura do Brasil contemporâneo! Apresenta-se, portanto, não apenas como parte da política, é em si mesmo um ato político. Como diria Betinho (2009:8) faz análise política quem faz política, mesmo sem saber. Neste caso em particular o autor do livro, Bruno Cava, sabe que seu texto é “uma arma de combate” pela qual articula estrutura e conjuntura do Brasil contemporâneo, mapeando acontecimentos, cenários, atores e correlações de forças explicitadas de forma aguda no evento[1] de junho.
A
imersão do autor no interior das lutas se comprova pela pela etnografia dos
acontecimentos, lugares, performances e seus atores. Sua militância se homologa
pelo risco assumido entre o ricochetear das balas e lançamentos de gás lacrimogêneo
acionados pela política da violência e criminalização. Se legitima pela
expressão fenomenológica que o texto apresenta; captando intuitiva e
intelectualmente ritmos, movimentos, sonoridades, cores e sensibilidades que
atravessaram os corpos da multidão enquanto experiência ontológica. Consciência
e evento, experiência e razão, campo de lutas e de idéias são mobilizadas
processualmente para constituição do texto, “um evento no evento” segundo
Giuseppe Cocco, alem de “um belo momento de luta”, sem insinuar-se “vanguarda”.
É assim que Cava apanha criticamente no interior das manifestações o movimento real do campo político brasileiro; mapeia as lutas e suas respectivas agendas, táticas e estratégias; registra as artimanhas do poder dominante com suas formas de controle e captura dos poderes que colocam a “terra em transe”. Sua análise corresponde a uma desnaturalização de um Brasil “Maior” realizada por um mosaico de micronarrativas tecidas “por dentro” das manifestações, no calor das lutas e no sofrimento dos corpos que não apenas resistiam a um “choque de ordem”, mas igualmente denunciavam as rachaduras, contradições e conflitos de um Brasil escravocrata, racista e colonial. Sim! Este livro se fez nas lutas e pelas lutas e trata, sobretudo, das relações e tensões do poder constituído contra o poder constituinte.
Cava
deixa claro que o ciclo de lutas atacou frontalmente não apenas a imagem
superlativa de uma Brasil “para inglês ver” mas, sobretudo, a máquina
representativa, responsável por operacionalizar uma democracia mesquinha de
baixa intensidade, capturada pela lógica econômica que regula, pacifica e converte os votos e
zonas eleitorais em territórios onde os fluxos de capital devem circular com
segurança.
Evidência que ciclos de protestos e indignações não são particularidades de países que estão inscritos em crises econômicas e financeiras, que existe um “fator global” em cena, disparado pelas revoluções árabes em 2011 (p.51). Segundo Cava as manifestações no Brasil “se inserem no ciclo global de lutas insurrecionais e constituintes” (p.81). Lutas e microinsurreições podem igualmente ocorrer em momentos de expansão do capital, de crescimento econômico e inclusão social. Aliás, segundo o autor as manifestações também expressam um revolta com um certo tipo de inclusão (p.109). Resumidamente Cava sugere, captando os sentidos em mudança, que a “realidade está solta, sem gentileza pros esquemas” (p46;56;55), por isso a mídia corporativa com seu arsenal de jornalistas e os partidos tradicionais erraram amplamente na explicação do evento.
A multidão de Junho em sua retroalimentação
entre redes e ruas atravessou o Brasil de Oiapoque ao Chuí em um contexto de
relativo crescimento econômico, baixas
taxas de desemprego e forte inclusão social realizada na última década que
criou as condições para emergência da “nova classe média”; “monstro” forjado
pelo Lulismo, seu melhor produto e pior pesadelo, que de
repente ousou “querer mais” e saiu às ruas, gerando incompreensão e perplexidade
da direita à esquerda, que impossibilitadas de ler a multidão de junho (p.43;78;106)
trataram imediatamente de desqualificá-la (p.86), criminalizá-la. Da mobilização
produtiva de caráter econômico originou-se por dentro das políticas oficiais
uma criativa mobilização produtiva da multidão de pobres, emergentes e bárbaros
que ousaram não apenas dinamizar o mercado interno ( atenuando o impacto da
forte crise que atingia a Europa e os EUA ) mas abalar o mundo política
brasileiro, dinamizando igualmente as condições históricas e políticas de mudança
social.
O livro está recheado de intuições e lampejos teóricos que transbordam de texto em texto, contudo, para finalizar a presente resenha cabe sugerir o que seria o argumento central do conjunto de textos: que o ciclo de lutas, protestos, tumultos e resistências se inscreve em um contexto de “constituição selvagem” ainda em curso, uma mudança subjetiva de larga escala nascida do crescimento econômico (p.11) e caracterizada pela nova composição social brasileira (p.106) que em um certo momento de suas ascensão cansou das múltiplas e naturalizadas violências e humilhações da qual seu corpo ainda é objeto; uma violência seletiva, “cristalizada no ônibus, no metrô, no hospital, na escola, na arquitetura (p.103), na atuação da polícia que mata, enfim, nas operações de higienização, remoção e expropriação explicitadas em um projeto de cidade que privilegia grandes projetos e eventos em detrimento do trabalhador metropolitano. Sim! Os corpos da multidão se chocam contra um projeto de cidade (p.59), contra um estado distante da composição social, “incapaz de comunicar-se, de ser perpassado desde baixo” (p.117) e que prossegue bloqueando perspectivas de vida, ampliação de liberdades.
A
mudança na esteira das manifestações de junho converteram-se em novas relações
entre Estado e sociedade, mas impactaram especial e irreversivelmente a
percepção política de toda uma geração, traduzindo-se numa mudança em curso da
cultura política brasileira que apesar de funcionar pela “pacificação do dissenso” e “esquemas
de governabilidade” nada transparentes, agora se vê mexida por
Pensando o livro objetivamente pode-se afirmar que o mesmo exala política, política em sentido bruto; das formas pelas quais razões, interesses e afetos “selvagens” se convertem em resistências e lutas extra-institucionais face ao poder da ordem, poder constituído.
Trata-se de uma lúcida análise de conjuntura do Brasil contemporâneo! Apresenta-se, portanto, não apenas como parte da política, é em si mesmo um ato político. Como diria Betinho (2009:8) faz análise política quem faz política, mesmo sem saber. Neste caso em particular o autor do livro, Bruno Cava, sabe que seu texto é “uma arma de combate” pela qual articula estrutura e conjuntura do Brasil contemporâneo, mapeando acontecimentos, cenários, atores e correlações de forças explicitadas de forma aguda no evento[1] de junho.
É assim que Cava apanha criticamente no interior das manifestações o movimento real do campo político brasileiro; mapeia as lutas e suas respectivas agendas, táticas e estratégias; registra as artimanhas do poder dominante com suas formas de controle e captura dos poderes que colocam a “terra em transe”. Sua análise corresponde a uma desnaturalização de um Brasil “Maior” realizada por um mosaico de micronarrativas tecidas “por dentro” das manifestações, no calor das lutas e no sofrimento dos corpos que não apenas resistiam a um “choque de ordem”, mas igualmente denunciavam as rachaduras, contradições e conflitos de um Brasil escravocrata, racista e colonial. Sim! Este livro se fez nas lutas e pelas lutas e trata, sobretudo, das relações e tensões do poder constituído contra o poder constituinte.
Evidência que ciclos de protestos e indignações não são particularidades de países que estão inscritos em crises econômicas e financeiras, que existe um “fator global” em cena, disparado pelas revoluções árabes em 2011 (p.51). Segundo Cava as manifestações no Brasil “se inserem no ciclo global de lutas insurrecionais e constituintes” (p.81). Lutas e microinsurreições podem igualmente ocorrer em momentos de expansão do capital, de crescimento econômico e inclusão social. Aliás, segundo o autor as manifestações também expressam um revolta com um certo tipo de inclusão (p.109). Resumidamente Cava sugere, captando os sentidos em mudança, que a “realidade está solta, sem gentileza pros esquemas” (p46;56;55), por isso a mídia corporativa com seu arsenal de jornalistas e os partidos tradicionais erraram amplamente na explicação do evento.
O livro está recheado de intuições e lampejos teóricos que transbordam de texto em texto, contudo, para finalizar a presente resenha cabe sugerir o que seria o argumento central do conjunto de textos: que o ciclo de lutas, protestos, tumultos e resistências se inscreve em um contexto de “constituição selvagem” ainda em curso, uma mudança subjetiva de larga escala nascida do crescimento econômico (p.11) e caracterizada pela nova composição social brasileira (p.106) que em um certo momento de suas ascensão cansou das múltiplas e naturalizadas violências e humilhações da qual seu corpo ainda é objeto; uma violência seletiva, “cristalizada no ônibus, no metrô, no hospital, na escola, na arquitetura (p.103), na atuação da polícia que mata, enfim, nas operações de higienização, remoção e expropriação explicitadas em um projeto de cidade que privilegia grandes projetos e eventos em detrimento do trabalhador metropolitano. Sim! Os corpos da multidão se chocam contra um projeto de cidade (p.59), contra um estado distante da composição social, “incapaz de comunicar-se, de ser perpassado desde baixo” (p.117) e que prossegue bloqueando perspectivas de vida, ampliação de liberdades.
“forças
subterrâneas e míticas, até então mantidas escravas e domesticáveis(..) que desobstruíram forças, desataram conflitos, desencadearam possibilidades. Nascidos de pressões insuportáveis, pelas quais se movem e vivem as tensões
sociais, políticas e econômicas do novo brasil e os ‘custos do progresso’. Foi
como se placas tectônicas tivessem se mexido, transmitindo abalos em vários
níveis, mudando a paisagem, reconfigurando espaços e temporalidade da políticas
brasileira” ( CAVA,2013, p.134)
BIBLIOGRAFIA
SOUZA, Herbert J.S.
Como se faz análise de conjuntura. 3ª Edição. Petrópolis, RJ:Editora Vozes, 2009
NEGRI, Antonio.Kairós,
Alma vênus, Multitudo: Nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A,2003
[1]
Ver (p.39) Kairós, prolegômenos do nome comum.
In: Kairós, Alma vênus, Multitudo. Antonio Negri Evento significa um
temporalidade histórica onde o “nomear e coisa nomeada nascem ao mesmo tempo.
Ambos são chamados a existir: nesse sentido, o nome e nome comum constituem um
evento.