Este breve ensaio, que busca
apreender algumas dimensões da crise deflagrada em 2008 nos EUA e que depois se
irradiou para Europa, não possui a intenção de realizar um balanço crítico de
todas as proposições teóricas ou posicionamentos políticos dos autores,
objetivo que não caberia nos limites desse texto. Embora em algumas ocasiões
sejam realizadas críticas e apontadas insuficiências analíticas, o horizonte do
texto é o de sinalizar convergências nas análises dos autores abordados,
especialmente no que se refere a 1) natureza da crise e implicações sociais 2)
Os limites do Estado-Nação e sua soberania, 3) Crise dos partidos políticos e
da democracia 4) Saídas para crise e reinvenção da política. Os autores que tomaram como objeto a crise
foram David Harvey (2011), Boaventura de Souza Santos (2011), Alan Touraine
(2011) e Zigmunt Bauman (2010. Considerando que os efeitos dessa crise do
capitalismo se faz sentir até hoje, especialmente na Europa que padece de
problemas econômicos, sociais e políticos, é importante sumariar brevemente
algumas dimensões de sua razão de ser e alguns de seus efeitos.
1) Natureza da crise e implicações sociais.
Antes de tudo é fundamental apontar o seguinte; todas as explicações
sobre a crise, para além dos aspectos conjunturais, inscrevem suas proposições
tomando o mundo, o globo como ponto de análise essencial, daí convergirem na
constatação de que a natureza da crise é global e possui uma dimensão
sistêmica. O cenário de análise, portanto, toma o fenômeno da globalização como
uma realidade concreta, imprescindível para se entender os dilemas e movimentos
do mundo contemporâneo.
O ponto de convergência
central das análises quanto a este ponto diz respeito a constatação de que a
crise ainda em vigência está intimamente ligada ao modo como o capitalismo vem
se desenvolvendo nos últimos três decênios. Harvey e Santos foram mais bem
sucedidos no detalhamento desse
processo.
Harvey aponta
que a deflagração da crise foi
mais um momento de bloqueio para realização do capital, do lucro, e que sua
dimensão mais específica é o fato da mesma ser fictícia, isto é, se originou no mercado financeiro especulativo a partir de inovações financeiras (a exemplo
dos subprimes) possibilitadas pelas tecnologias da
informação que também conectaram on-line os mercados mundiais (“Big Bang”).
Outro ponto importante de sua análise quanto a natureza da crise é o fato de
ter sido potencializada pelo projeto neoliberal em curso desde final dos anos
80, cujo objetivo era deixar o mundo livre às leis do mercado, facilitando a
circulação do capital e simultaneamente avançando no controle do trabalho
organizado. A crise, na sua perspectiva foi o ápice de um padrão de crises
financeiras iniciadas na década de 1970 e, além disso, representa mais um
momento de racionalização das irracionalidades do capitalismo.
Santos, para além de sinalizar os elementos nacionais e regionais da
crise, assim como Harvey, inscreve sua
análise nas nuanças que o capitalismo global em sua fase neoliberal tem operado
no sentido de se tornar hegemônico e “disciplinar” os países às suas leis do
mercado financeiro. Para Santos a natureza da crise se vincula a arma de
destruição do neoliberalismo: o mercado
financeiro, este não apenas procurou se distanciar das demandas concretas da
produção econômica como tornou-se hostil a democracia e a socialização da
economia. Deste modo, Harvey e Santos, apesar de caminhos e formações
intelectuais distintas, chegam a uma conclusão semelhante. Realizaram, reitero,
um esforço no sentido de uma análise critica e sistêmica da crise em
contraponto a interpretações unidimensionais, geralmente associadas ao
pensamento neoliberal dominante.
Quanto a Touraine, podemos
dizer que sua interpretação sobre a crise é também uma interpretação daquilo
que a crise acelera; da falência da
sociedade industrial e seus atores com a simultânea emergência de uma “nova sociedade” assente em princípios,
sobretudo, culturais. Mas, para além dessa dimensão de transição Touraine,
assim como Harvey e Santos, atribui uma centralidade aos processos de
globalização econômica de caráter neoliberal no desencadeamento da crise.
Essa crise, segundo o Francês, que acelera uma “separação entre
ator e sistema” está relacionada a
ruptura entre os processos de globalização econômica e sua dimensão financeira
com os atores e instituições locais e nacionais que se encontram limitados
politicamente para fazer face aos poderes de uma economia globalizada. Essas
rupturas correspondem igualmente a separação entre capitalismo financeiro e
economia ‘real’ potencializados segundo o autor pelo capitalismo Americano e
Inglês. Quanto a este último ponto vale salientar que não apenas Touraine, mas
Santos e Harvey, apontam, para além da natureza global da crise, que os EUA são
os maiores responsáveis pelos seus desdobramentos mundiais.
Já para Bauman, a natureza
da crise não foge muito das explicações precedentes, isto é, está assente nos
marcos do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. Para Bauman, a crise
atual não é apenas o resultado das inovações financeiras dos bancos, é o
próprio sucesso de um momento fabuloso de um capitalismo à crédito que
transforma cidadãos em consumidores vorazes, que tendem reproduzir o
capitalismo a partir de suas dívidas contraídas por crédito fácil. Bauman não
faz alusões diretas ao neoliberalismo, nem se dedica a explicar a
financeirização da economia, mas conclui, assim como Harvey, que a crise é de
bloqueio para realização do capital e que evidencia mais um momento em que o
mesmo vai se articular para conseguir “novos pastos” para “parasitar”.
Além disso, vale destacar
que todos os autores de modo mais contundente ou de maneira indireta, apontaram
como elemento facilitador e até indutor da crise, um modo dominante de se
perceber e interpretar a crise, que condicionou igualmente os caminhos
apresentados para sua resolução. Esse modo dominante de interpretação sofreria,
segundo Santos, de um déficit explicativo, “tomando como específico o que é
sistêmico”. Harvey, por sua vez, apontou uma percepção muito estreita da crise
por parte de uma geração de intelectuais e, sobretudo, de economistas (quase
matemáticos) que esqueceram Keynes e desprezaram Marx. De modo menos contundente
Touraine argumentou que o esgotamento das interpretações da sociedade atual foi
uma das principais causas da crise. Por fim, Bauman sugeriu que a deflagração
da crise esteve associado a um modo de pensar e agir dominantes que não estavam
limitados às elites econômicas ou segmentos intelectuais, mas estavam
encravados na mentalidade das pessoas comuns, qual seja, o pensamento segundo o
qual se poder conseguir e comprar tudo agora e resolver depois, trata-se em
suma, do que Bauman caracteriza como vida à crédito, um modo de pensar e viver
que se utilizar de cartões e créditos fáceis para reproduzir uma existência na
base de dívidas eternas.
No que se refere aos
desdobramentos sociais desencadeadas pela crise podemos destacar o seguinte.
Verifica-se a partir de
todos os autores, sem exceção, que a crise econômica e financeira tem
sistematicamente desmantelado o que se denominou por Estado de bem estar
social, um conjunto de direitos e instituições que garantiam as “condições de
prosperidade da população”
Como bem destacou Bauman,
o capitalismo parasitário não pode
continuar sua exploração – extração de valor - sem prejudicar seu hospedeiro, destruirá , cedo ou tarde, as
condições de sua prosperidade ou mesmo
de sua sobrevivência. As condições de prosperidade estão relacionadas a níveis
suportáveis de igualdade, justiça, liberdade oferecidos por um Estado social
forte.
Acentua-se enquanto
desdobramento social da crise aquilo que Bauman chama de “danos colaterais”, as
ações imprevistas, não pensadas, ou mesmo tidas como não importantes em suas
ações e elaboração de planos, projetos, programas.
Esses danos colaterais se potencializam em momentos de crise e seus
impactos atingem imediata e particularmente os “dejetos da ordem”, o “refugo da
modernização”, em outras palavras, os efeitos explosivos e indiretos da crise e
da globalização afetam as classes mais baixas, o pólo pobre da reprodução e
criação das desigualdades. Vale registrar que nos últimos anos esse impacto não
previsto tem atingindo abruptamente não apenas o “refugo”, mas a classe média
tradicional e ampla parte de uma juventude, inclusive, bem formada.
Bauman salienta que a “a
aventura das ‘hipotecas subprime’, multiplicaram em milhões o número de pessoas
sem casa, “com a epidemia de retomada de imóveis”. Harvey registra também o
despejo de milhões de pessoas, sobretudo, de classes baixas operado pelas
instituições que lhes concederam ‘crédito fácil’, além disso, realça que em
termos sociais a crise evidencia um ataque frontal do capital
em relação ao trabalho, expresso especialmente no aumento da pobreza e
desigualdade nos EUA e no
desmantelamento do já reiteradamente atacado modelo social Europeu.
Quanto a essa dimensão
social Santos dá especial atenção para “a desmedida das medidas de austeridade
recessiva” que resultam em “aumento dos níveis de desigualdade e pobreza de par
com o aumento da discriminação”, solo fértil para a proliferação dos fascismos
sociais. Anota ainda, que o aumento da pobreza é o impacto social mais
previsível das medidas de austeridade, mas o seu significado político decorre
de estar ligado ao desmantelamento da já frágil classe média. Somado a isso e,
de maneira geral, ocorre o endividamento das famílias, aumento do desemprego ,
da economia informal, juntamente com a erosão dos direitos trabalhistas. Sua
ênfase é a destruição da sociedade-providencia
causada pela crise, expressa em cortes nas despesas sociais do Estado,
na acentuação da crise no mercado de trabalho, cortes nas reformas e pensões.
Por fim, ainda que de modo
mais abstrato, Touraine fala das implicações sociais da crise, da acentuação da
pobreza, desigualdade, problemas étnicos e de surtos de nacionalismos e
protecionismos. Mas no geral, as implicações sociais da crise segundo o autor
estariam relacionadas a “decomposição
dos atores sociais” da sociedade atual, vale dizer francesa.
No limite, todos convergem
quanto ao desmantelamento do Welfare-estate realizado pelo capital para atenuar
seus prejuízos e com exceção de Bauman, todos apontam que as medidas da troika (Banco central Europeu, Fundo
Monetário Internacional e União Europeia)
tem dificultado uma saída socialmente saudável dos países europeus da
crise, ao contrário ela tem acentuado os problemas sociais e as dívidas do
Estado através do planos de austeridade que solapam os direitos dos
trabalhadores conquistados às duras penas. Trata-se da socialização dos
prejuízos gerados pela crise na medida em que -
como veremos adiante - o Estado salva os rendimentos do capital se
endividando e simultaneamente maltratando econômica e social as populações com
seus programas de austeridade.
Podemos resumir, que do ponto de vista social a crise explicita e acentua
o lado negativo (desemprego, pobreza, desigualdade, conservadorismos,
fascismos, preconceitos), e indireto (efeitos e “danos colaterais”) do
laissez-faire global. Considerando os efeitos sociais da crise no contexto
europeu concordamos com Santos (2011) quando afirma que o continente europeu
está a assistir o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, acentuando dilemas
ou criando problemas tidos como resolvidos e presentes apenas em países
considerados “subdesenvolvidos”.
2)
Os limites
do Estado-Nação e sua soberania.
O Estado-Nação vem sofrendo abalos e redefinições de longa data, desde
seu nascimento no âmbito da modernidade, não obstante, seus impasses se
acentuaram em tempos de globalização do capitalismo, especialmente de sua
esfera econômica e financeira. Tais impasses se intensificaram com a crise e
seus desdobramentos que atingiram fortemente os EUA e a Europa, obrigaram seus
Estados a posturas ambivalentes quanto a resolução dessa crise. Vamos aqui nos
deter nos argumentos que Harvey, Bauman, Touraine e Santos apresentam para
explicar o posicionamento dos Estados-Nação diante do desafio que a crise
representa.
Sobre este ponto Harvey é categórico ao afirmar que o Estado tem
assumido, desde as crises da década de 80, como a do México, uma postura
política de se mobilizar e mostrar seu poder para salvar instituições financeiras
à revelia dos males que isso pode causar a nação e ao seu território.
Essa atitude do Estado, segundo Harvey, deriva do que ele denomina “nexo
Estado-Finanças”, um mecanismo que não se importa com espaços geográficos ou
sentimentos de pertencimento, seu objetivo é tão somente gerir os aparatos do
Estado para criação de capital e fluxos monetários. Retomando argumentos já
apresentados, é precisamente através desse
“nexo” que ao “ longo da história
do capitalismo muito esforço tem sido posto, na redução do atrito de
distância e dos obstáculos à
circulação”, afinal, se os obstáculos se toram instransponíveis “, podem produzir uma crise (definida como uma
condição em que os excedentes de produção e reinvestimentos estão bloqueados)”,
pois, “se o crescimento não recomeça,
então o capital superacumulado se desvaloriza ou é destruído. Nesse sentido, Estado e capital são lados de
uma mesma moeda e objetivam criar segurança para criação e circulação do
capital. Território, nação, democracia e soberanias nacionais em um mundo
globalizado não garantem apenas segurança para o capital, mas igualmente
limites para sua reprodução.
Bauman assume uma posição semelhante a de Harvey quando afirma que em
todas as mutações pretéritas do capitalismo, o Estado também participou
efetivamente no sentido da “criação de novos pastos a explorar”, dando como exemplo o fato de que foi durante o
governo Clinton que as hipotecas subprime
foram introduzidas, a fim de conceder crédito fácil para compra da casa
própria, à pessoas sem condições de pagar a dívida assumida. Quer dizer, o
próprio Estado é responsável em transformar setores da população em endividados
explorados pelas instituições de crédito.
Constata-se, portanto. que o Estado teve influência decisiva na
deflagração da crise, e as “saídas” que
escolhe para salvar o país, nesse momento tido como Nação, apenas consagra o
poder dos ricos e do capital, não é por ocaso que Bauman denominou esse tipo de
Estado de “Estado assistencial para os
ricos”. Mas esse tipo de atitude estatal não é novidade, pois, segundo Bauman,
a cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre
eles, quando acontece, é a exceção. Em
geral as políticas do Estado capitalista. ‘ditatorial’ ou ‘democrático, são
construídas e conduzidas no interesse e não contra
o interesse dos mercados. E no mesmo
sentido da análise, Harvey aponta, que o principal efeito dessa postura do
Estado, embora não abertamente declarado é avalizar/permitir/garantir a
segurança e a longevidade do domínio do
mercado.
Daí que a livre circulação do
capital pelo território, seja especulando ou deixando seus prejuízos sociais a
nação, é aceita com naturalidade pelo Estado, ainda que alegue fervorosamente
que não deixará ninguém sair impune. Os limites políticos para o Estado regular
o capital nos limites de seu espaço se assenta no fato de que essa regulação
poderá engessar suas próprias ações enquanto Estado. A política de arrecadação
estatal globalizou-se e não pode restringir-se ao seu território nacional, o
que consequentemente implica em aceitar o capital transnacional caminhar por
suas terras, sob o risco de estagnar-se no cenário global e inscrever seu país
num protecionismo econômico de consequências não previstas.
Touraine, ao contrário de Harvey e Bauman, não apresenta diretamente a
ambivalência do Estado diante crise e como Estado e Mercado estão imbricados,
mas não economiza em sua crítica; simplesmente argumenta que o Estado não tem
nada em comum com seu homólogo de 1936 e com o New Deal, que inclusive, “já não
pode mais ser apresentado como uma peça central do sistema democrático
representativo, pois vai de mal a pior”. Diante da crise, o Estado tem sido
capturado pelo capital financeiro internacional e não tem conseguido o mínimo
de legitimidade para continuar funcionando. A troca de ministros na Europa
entre 2009 e 2013 é um indicativo disso.
Além disso, entrevemos da análise de Touraine que o Estado forjado no
âmbito da sociedade industrial está desaparecendo, se separou da nação, que o
primeiro se subordinou ou se aliou aos movimentos da globalização econômica e,
o segundo, se encontra limitado em seu espaço enquanto sociedade política sem
poder para interferir nas políticas macroeconômicas (cambial, fiscal etc) e, de
modo, geral nas soluções para viabilizar uma saída para crise. Isto é, os
capitais financeiros tem a liberdade não só para adentrarem o Estado-Nação e
especularem, mas podem inclusive levar países a
bancarrota e sair sem qualquer prejuízo ou responsabilidade pelo
ocorrido.
Por fim, Santos realça, assim como
Touraine e Harvey (nos EUA), que os governo Europeus se deixaram
sistematicamente capturar pela avidez do neoliberalismo e “da sua arma de
destruição massiva, o capital financeiro, a forma de capital mais hostil à
deliberação democrática e à socialização da economia”. Trata-se de um poder que
não respeita fronteiras e nem soberanias, mas ao mesmo tempo está vinculada aos
Estados Nacionais.
Esse poder, para Santos, é o responsável pelo fim do estado como indutor
de mobilidade social, fim do Estado- providência, expressa em certo sentido o
próprio colapso da nação e sua ruptura informal com o Estado; informal porque
formalmente as relações existem e presidem os processos de deliberação ditos
“democráticos”. E assim o Estado se separa da Nação, em outras palavras, o
casamento Estado e sociedade está em
crise, o que será assinalada em tópico seguinte.
É diante desse quadro, de crises, rupturas e indistinção entre Estado e
Mercado que as noções de soberania e nação precisam ser redefinidas,
reformuladas no sentido de tornarem-se inteligíveis nos marcos de um mundo em
intenso processo de globalizações. Podemos afirmar, se ancorando em Ianni,
(2004) que esse é contexto que “se cria e recria a nação, compreendendo a
sociedade e o Estado, o território e a fronteira”. Se a nação se formou principalmente no contexto do liberalismo,
transforma-se drasticamente no contexto do neoliberalismo. Sobre este ponto, as análises sobre a crise
apresentadas neste trabalho apontam esse horizonte, que
No âmbito do
neoliberalismo, o Estado-Nação entra em crise, é levado a redefinir-se. A dinâmica da globalização exige a
reestruturação do Estado, a privatização das empresas produtivas estatais, da
saúde, da educação, transporte, habitação e previdência. Assim se modifica, ou
mesmo rompe, a relação entre o Estado e a sociedade. (IANNI, 2004:321)
Outra implicação marcante no contexto da crise causada pelas
consequências neoliberais especialmente de caráter financeiro, é o fato de Estado se tornar mais rearticulado “ às
exigências e às possibilidades da globalização do capitalismo”, ao mesmo tempo
que “amplos setores da sociedade civil dinamizam-se no sentido do nacionalismo,
compreendendo o território e a fronteira, a história e a tradição. É Diante de
tal cenário que,
Os indivíduos e as
coletividades são desafiados a reposicionarem em face de um Estado cada vez
mais divorciado das suas inquietações e ambições.(..) Rompem-se algumas das
articulações que conformavam todo Estado e sociedade, ou Estado-Nação (IANNI, 2004:321)
2.1) O PAPEL DO ESTADO E A REGULAÇÃO DA
GLOBALIZAÇÃO
Prolongando o debate acerca do
tópico precedente, podemos afirmar que os impasses e dilemas do Estado nacional
são fontes riquíssimas para desmistificar um debate (o qual não vamos nos deter
aqui) acerca dos limites e do papel do Estado no âmbito dos processos de
globalização.
Encontramos no interior das leituras realizadas tantos análises que
admitem a inexorabilidade dos processos de globalização atingindo e
enfraquecendo a autonomia dos Estados no sentido de soberania nacional, quanto
análises que tentam evidenciar que os Estado ainda são fonte política de
resistência e alternativa face à dinâmica global do mercado. Contudo,
acreditamos que esses posicionamentos se mostram insuficientes para apreender
as dinâmicas complementares entre Estado e mercado no quadro da globalização e
dos processos de financeirização. Apontamos aqui um postura intermediária
Nota-se que o debate Globalistas x
nacionalistas apresenta-se como polarização infértil que deve ser abolida;
tanto existem processos concretos de globalização (para além das ideologias
imperialistas e neoliberais que capitalizam seus processos), aliás
globalizações, como existe ainda poder e resistência dos Estados para se redefinirem
frente a esses processos, não considerando-os como simples correia do
capitalismo financeiro-global, entidades que estariam fadados ao fracasso na
medida em que sua soberania seria completamente usurpada pelos poderes e
instituições globais. Certamente uma situação pós-neoliberal já se delineia,
apesar das resistências, contudo, de um lado, nem a globalização vai
desaparecer e tampouco o Estado recuperar sua autonomia face as grandes
corporações, mercados financeiros e instituições supranacionais e, de outro,
seu papel de regulador econômico e integrador social muda de modo
significativo.
A perspectiva é que daqui em
diante, como aponta Cocco (2012) na esteira de Negri (1999), o futuro do papel
do Estado será cada vez mais ambíguo entre as instituições nacionais(e seus
objetivos) e supranacionais, exceto no caso dos Estado norte-americano enquanto
“ nação cujos interesses correspondem quase inteiramente aos densos do mercado
mundial”. Posição privilegiada que a meu ver tem sofrido grandes abalos seja
pelas condições internas do país com aumento do desemprego e crise fiscal, seja
externamente pela relativa mudança em curso da geopolítica e geoeconomia
mundial com destaque para os BRIC’S, especialmente da China, no sentido de
redefinição dos espaços e instituições que deliberam acerca dos impasses
políticos e econômicos que caracterizam as relações interestatais.
A questão está em como regular a
globalização, ou melhor a globalização hegemônica, imperial, financeira. Esta
regulação passa necessariamente pela
democratização dos processos de globalização em nível sistêmico, isto é, no
aprofundamento de outras globalizações, globalizações contra e
alter-hegemônicas. Enfim, trata-se de viabilizar a mundialização de outras
relações, processos e estruturas que estejam assentes em princípios não
monetários, financeiros, mercantis, os quais legitimam a supremacia do valor de
troca em cima do valor de uso, que priorizam o mundo dos objetos em detrimento
do mundo da vida, que reduzem a qualidade de viva ao bem-estar material à
revelia do bem-viver expresso em amizades, afetos, reciprocidade, amor.
3)
Crise dos
partidos políticos e democracia deslegitimada.
A democracia não apenas encontra-se em crise nos EUA e Europa, mas
parece que o capitalismo não simpatiza mais com a mesma, apenas sob a condições
de torná-la serva dos seus interesses. Vimos a derrubada dos governos
democráticos e eleitos na Grécia e na Itália, e simultaneamente se
realizaram a nomeação de governos
tecnocratas, que deveriam ser neutros e
cuidar somente de aspectos ‘técnicos’ relativos a economia, no entanto, estão
lá para cumprir a vontade do grande capital financeiro e seus agentes (bancos,
agências de classificação, especuladores etc.). Vejamos o que podemos extrair dos autores acima
elencados sobre a questão em pauta.
Começemos por Touraine, que durante o desenvolvimento de seu livro chamou
atenção diversas vezes para a falência das instituições, formas de ação e
representações tradicionais para fazer face aos dilemas que a sociedade
contemporânea tem enfrentado e que se agudizam em tempos de crise.
De acordo com Touraine, na Europa os partidos de esquerda provaram sua
impotência diante da crise, a esquerda não somente se enfraqueceu no que se
refere as reivindicações salariais, mas igualmente não soube interpretar
adequadamente a crise europeia. Em um dos cenários traçados por Touraine a
respeito do futuro que a Europa pode ter, sinaliza o fracasso dos partidos e
sindicatos impossibilitados de realizarem mudanças significativas em um cenário
onde o capitalismo sofreu uma grave crise, mas se reergueu rapidamente. Esse é o cenário onde os eleitores não
saberiam “diferenciar a esquerda da direita” ao mesmo que se instala um
silêncio social inesperado, onde as próprias vítimas da crise podem “anunciar a
formação de um movimento violento”. Aproximadamente um ano após o lançamento de
seu livro (2009) um conjunto de manifestações mais ou menos espontâneas foram
realizadas pelas “vítimas da crise” e algumas com o caráter mais ou menos
violento, é o caso das destruições realizadas por jovens em Londres.
Diante da crise temos o fracasso das
instituições tradicionais e a própria morte da idéia de luta de classes assinala Touraine. Nem direita, esquerda ou
social-democracia, nada disso, para o Francês a crise acelera a decomposição
das categorias, idéias e os atores da sociedade industrial
Diante dos paradoxos gerados pelas implicações da crise Santos pergunta
“se estamos perante dois mundos diferentes ou se a social-democracia desertou
da Europa e emigrou para o Brasil.” Essa pergunta expressa uma dimensão de sua
análise relacionada aos sucessivos fracassos dos partidos políticos não somente
em Portugal mas na Europa como um todo. Os partidos, em sua análise,
encontram-se com sérias dificuldades para interromperem o processo de
destruição do Estado de bem estar social Europeu.
Santos destaca que durante o século XX,
a social-democracia e o horizonte utópico comunista por exemplo serviu
como corretivo
para modelo social europeu, o Estado
Providencia e o direito laboral. Tratou-se de uma forma “corrigir” o
capitalismo e mantê-lo com algum nível de racionalidade. Não obstante, com o
desgaste das experiências socialistas mal-sucedidas o capitalismo se viu sem inimigo
credível e um dos resultados imediatos foi o enfraquecimento da
social-democracia após a queda do muro de Berlim. Sem esse adversário a
social-democracia colapsa e o capital vampiriza sem freios o trabalho e os
novos ‘pastos’ para realização do lucro e da acumulação capitalista.
Para Santos a crise acentua o desgaste e falta de legitimidade dos
partidos tradicionais, lembrando que a nova geração de portugueses, denominados
‘ a geração à rasca’, experimenta um momento de incerteza e futuro incerto. Até
agora essa “geração esta divorciada dos sindicatos” e um quanto descrente em
relação aos partidos. Parte do fracasso desses Santos atribui ao fato de os
mesmo não terem incorporado de modo claro e eficaz as demandas, interesses e
lutas dos novos movimentos sociais a exemplo do feminismo, do movimento de gays
e lésbicas, movimento ecológico, entre muitos outros.
O fracasso dos partidos se realiza simultaneamente ao enfraquecimento
continuada da democracia, que aos poucos perde legitimidade, na medida em que,
como destaca Santos, a população percebe que ela não atende suas demandas e
está refém, assim como os políticos e partidos, do capital financeiro.
Harvey, quanto a este ponto é bastante incisivo, indicando não exatamente
o colapso das instituições ou partidos tradicionais mas sugerindo a supremacia
de alguns setores e partidos. A esse respeito comenta que não foi coincidência
que o ‘’Partido de Wall Street’’ tenha tomado o poder, tato no Congresso quanto
no Executivo? E por que os mais ricos enriqueceram imensamente em todos o
lugares, desde a Rússia e o México até a Índia e a Indonésia? Para Harvey não
há uma crise generalizada dos partidos tradicionais, republicanos e democratas. Ocorre que o
partido do capital, o partido das elites financeiras está com demasiado poder em
suas mãos ao mesmo tempo que a organização da classe trabalhadora em grande
parte da Europa e mesmo nos EUA que era relativamente forte, tornou-se em boa
medida subservientes aos interesses do trabalho organizado.
O fracasso dos partidos de esquerda para Harvey estaria relacionado ao
seu erro em “ignorar os movimentos que ocorrem fora das fábricas e minas”,
afinal de contas “A consciência de classe é produzida e veiculada tanto nas
ruas, bares, pubs, cozinhas, capelas, centro comunitários e quintais dos
subúrbios da classe trabalhadora como nas fábricas.
O problema ao seu ver é que a classe trabalhadora e os partidos de
esquerda não conseguiram se firmar nos últimos tempos como um “sério obstáculo
para a continua acumulação do capital”. Não é a toa que o intelectual americano
vai registrar que a maneira como essa barreira foi controlada pelo capital com
a ascensão do neoliberalismo durante os anos 1970 e o inicio dos anos 1980
define em muitos aspectos a natureza dos dilemas que enfrentamos agora.
Embora Harvey não trate diretamente da questão democrática, entrevemos em
sua análise que a democracia forjada no âmbito do capitalismo é uma pseudo-democracia,
uma democracia de poucos. O que temos ao seu ver é uma plutocracia que destrói
o bem-estar social das massas em compasso com a preservação e aumento da
riqueza e poder dos já ricos.
De
maneira geral o tom das análises é basicamente de descrença quanto a
possibilidade dos partidos tradicionais, se não se renovarem rapidamente, de
construírem caminhos e alternativas que limitem o capital financeiro e restitua
o valor da democracia, altamente deslegitimada perante a população que anseia
por formas de participação direta. É precisamente por isso, como veremos
adiante, que as saídas para as crises e não somente a crise econômica, passam necessariamente por uma reinvenção da
política que tome como ponto de partida os anseios e necessidades da multidão
de pessoas indignadas com o sistema político e econômico vigentes.
4)
Saídas para
crise e reinvenção da política
Em Santos e Touraine as medidas para saída da crise passam imediatamente
pela radicalização da democracia em todas as esferas.
Santos indica que a saída para crise pode ser através de um corretivo eficaz, tal como feito pela
social-democracia no passado ou por transformações
profundas que podem mudar a lógica do sistema e criar um novo modo de
organizar a política e a sociedade.
De acordo com o autor (p.19) , as crises podem ser resolvidas ou por corretivo eficazes que, que não
precisamente põem em causa a lógica do sistema que provocou a crise, mas
conseguem minimizar os ritmos e os custos sociais desta, ou por via de transformações profundas que visam mudar a lógica do sistema e criar um
novo paradigma de organização social e política. As primeiras representariam soluções
institucionais e as segundas soluções extrainstitucionais e, por conta disso, a
resolução corretiva é sistêmica e a resolução
profunda é antissistêmica.
Santos informa que “as periferias da
Europa ilustram hoje o recurso aos diferentes tipos de soluções” pois no
presente momento, “a periferia interna
tenta resolver as crises por via de
soluções institucionais, enquanto a periferia externa recorre a soluções
extrainstitucionais na busca de uma nova institucionalidade”. Diante desse
cenário, para Santos, o que importa é a radicalização da democracia em âmbito
local, nacional e global pois como já salientado anteriormente o que importa é
a politização da crise, sua redefinição prática da crise, que dependerá da
globalização contra-hegemônica, prescrita no atendimento dos imperativos
democratizar, descolonizar, desmercadorizar. Em outras palavras, a saída da
crise se inscreve na potencialização de processos de globalização
contra-hegemônica, prolongando no tempo movimentos e ideias já afirmados pelos
Zapatistas em Seatle e no Fórum Social Mundial para ficarmos apenas nesses
exemplos.
Touraine, por sua vez, ao final de seu livre se rende ao discurso de que
o mais importante em um contexto de crise é o aprofundamento da democracia para
evitar os abusos da dimensão financeira, não obstante, a superação da crise
para o autor estaria no que ele denomina de “direitos universais do sujeito
humano”, que poderia “estancar a destruição da vida social pela economia
globalizada. Como já salientado anteriormente, alega que essa tarefa não pode
ser realizada por uma revolução e , menos ainda pelas reformas que propõem as
sociais-democracias, ela só pode ser bem conduzida pelos militantes e pelas
figuras exemplares organizadas não verticalmente – e aqui se distancia de partidos
e os sindicatos - “mas horizontalmente, pela união pública e pelos atores
informados principalmente pela mídia e pela internet e decididos a não deixar
que tome forma um novo poder mais autoritário ainda que o poder antigo.”
A este respeito Bauman e Harvey reiteram e potencializam o que já
estivera explícito e implícito no desenvolvimento de seus argumentos.
Não me deterei aos argumentos de Bauman para não se tornar maçante e
repetitivo, já que em tópicos precedentes já foram desenvolvidos os argumentos
que sinalizam sua resposta para o presente tópico. Basta enfatizar o seguinte,
que para Bauman a saída de uma crise, que não queira imediatamente criar outra
crise, deve necessariamente passar pela mudança cultural dos modos de vida das
sociedades, da maneira como se reproduzem, consomem e se relacionam. De par com
isso sugere que já que os problemas são resultante de determinações globais,
nada mais prudente do que fortalecer instituições, organizações e associações
globais cosmopolitas que façam frente e regulem “ laissez-faire global”.
Harvey talvez seja o que mais se dedicou entre os autores aqui
selecionados para pensar possibilidades e ações para escapar da potencialização
dos prejuízos que uma crise prolongada pode causar, não obstante, não poderei
desenvolver aqui seus argumentos sobre o processo que levaria uma saída
completa da crise, pois significaria me deter sobre sua teoria
“correvolucionária” de superação do próprio capitalismo. Em outras palavras,
para Harvey, uma saída absoluta da crise resultaria em um saída do capitalismo,
afinal de contas, capitalismo é crise em movimento e esse movimento tem como
lógica a reprodução de espaços e existencias que dinamizem a circulação do
capital e, quando essa dinâmica tem bloqueios para se realizar, crises agudas
surgem como instrumento para drenar mais
capital, regular o trabalho, racionalizar o “irracional”.
Só para não ficarmos sem alguma indicação concreta sobre os caminhos para
“sair” da crise na perspectiva de Harvey, vale dizer que para o autor as crises
são momentos de paradoxos e possibilidades, que inclusive opções socialistas e
anticapitalistas podem surgir com força. A potencialização de uma saída ou
outra expressam sempre processos de racionalização das coisas, gentes e
sociedade, e essa racionalização ou melhor sua direção, é o que vai
caracterizar o vir a ser do capitalismo e das sociedades. Harvey reitera que em
tempos de crises há sempre opções e que a escolha de uma ou outra vai depender
da relação das forças de classes e das concepções mentais sobre o que poderia
ser possível. Entrando em convergência com os argumentos de Santos sinaliza que
o importante é a definição política da crise, pois é a partir da luta por essa
definição que sairá as respostas. Essa luta para Harvey passa pela luta das
concepções mentais de mundo que prevalecem na sociedade evidenciando que práticas
e concepções mentais de mundo vinculadas a lógica do capital seguem crise após
crise, inovando arquiteturas financeiras e institucionais para desbloquear os
entraves para acumulação; gerando suas opções políticas para a ‘solução’ da
crise, com a socialização dos custos ,
privatização dos lucros e a devida preparação dos termos da próxima crise.
Trata-se, afinal de contas, de criar e reproduzir em grande escala outras
concepções mentais de mundo que perpassem universidades, governos, mídias, de
forma que se convertam em orientação central das pessoas enquanto senso comum
dominante. No final das contas a luta é pela definição do mundo, da
estruturação da realidade; de como as
coisas funcionam!
Por fim, vale registrar que a ruptura crísica
que os tópicos acima indicam,
oportuniza pensar e por em prática outra
política e outro desenvolvimento, estes
não são apenas desejáveis e possíveis, mas se apresentam como a única saída
realista para os impasses globais nos quais o mundo está inscrito.
BIBLIOGRAFIA
BAUMAN, Zygmunt.
Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar,
2010
COCCO, Giuseppe.
Trabalho e cidadania: produção e direito na crise do capitalismo global. 3
edição. São Paulo: Cortez, 2012
HARVEY, David. O
enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011
IANNI, Octávio.
Capitalismo, violência e terrorismo.RJ, Civilização Brasileira, 2004.
TOURAINE, Alain.
Após a crise: A decomposição da vida social e o surgimento de atores não
sociais.Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2011
SANTOS,
Boaventura de Souza. Portugal: ensaio contra a autoflagelação. São Paulo:
Cortez, 2011.