Depois de ler algumas notícias sobre o complexo hidrelétrico Tapajós e ver um vídeo (Tapajós vivo e livre) sofre os Mundurukus escrevi essas breves e caóticas linhas reflexivas.
"Os fundamentos da desigualdade dos
territórios e povos eram de início, “naturalizados” em função do “clima
quente”, das “gentes frias” e de “animais frágeis” e “homens degenerados”. À
luz desse pensamento qualquer forma de intervenção sobre povos e culturas não
ocidentais seria aceitável. " (FREITAS,2009,p.21))
São os
desdobramentos dessa perspectiva em curso, agora manejadas e legitimadas pelo
Estado-Nacional que atualiza processos de intervenção na Amazônia sob a égide
do discurso desenvolvimentista. A Amazônia sob esse prisma é percebida como
"reserva estratégica", como "frente" de expansão econômica,
“vazio” demográfico, válvula de escape para os impasses do crescimento
econômico, aliás, o desenvolvimento tem sido cada vez mais reduzido a mero
crescimento econômico traduzido em um economicismo empobrecedor onde o que
importa é superávit primário, as exportações, as commodities, o balanço de
pagamentos favorável, bem enquadrados na dinâmica de valorização do capital.
Eis mais
um momento de “integração” de espaços e populações – distantes da civilização e
próximas à natureza - ao Estado nacional. Lucia Lippi (OLIVEIRA,2011,p.123)
comenta que mito do “gigante
pela própria natureza” tem sido a mais forte matriz para interpretar o Brasil.
Diria também que tem sido o mito mais forte para eliminar diversidades e
diferenças ao mesmo tempo que busca
ativamente “esquecer” as contradições e genocídios que se apresentam como “natureza”
a ser “trabalhado” para o desenvolvimento nacional. Eliminar a diversidade soa
como derrubar uma árvore que impede a passagem do “progresso” materializado em
uma estrada.
Desta maneira o Estado Brasileiro hoje recupera
um padrão, que segundo Oliveira (2011,p.127)era praticado no século XIX e XX: “ser civilizado, ser desenvolvido,
significava que a civilização deveria vencer a natureza.” Vencendo ou mesmo
tentando preservar a natureza, fato é que a construção da identidade nacional
ancora-se para o bem ou para o mal numa relação tenso e contraditória com um
patrimônio que antes de ser natural é social e cultural. Não, Amazônia nunca
foi um vazio em nenhuma sentido! Como bem registra Marilene Corrêa "A Amazônia Indígena que antecede a Amazônia Lusitana não tem
equivalente na cultura européia. É produto do desenvolvimento independente dos
povos que ocuparam a Região Norte, num período de pelo menos três mil anos,
antes da colonização. As distintas interpretações de arqueólogos, lingüistas,
antropólogos, encontram, hoje, um ponto comum sobre os seus modos de existência
e a efetiva adaptação ao meio ambiente pelos seus habitantes: a densidade
populacional, a fartura de alimentos, a extensão de seus domínios palas várzeas
e terras firmes, e as formas não predatórias de relação com a natureza." (FREITAS, 2009,p.15)
Contudo
atualmente o (neo)desenvolvimentismo atualiza uma imagem construída sobre a
Amazônia que vem sendo forjada há centenas de anos. O intuito é basicamente
convertê-la em espaço para reprodução ampliada do capital!
Como
sugere Marilene Corrêa(Freitas,p.22), colonização e desenvolvimento do capitalismo no
contexto Amazônico “criaram os
problemas regionais, o subdesenvolvimento econômico e sociocultural, inventou a
pobreza e a dependência, além de e instituíram a desigualdade estrutural e
federativa, de classes e povos.”
Os processos sociais, políticos e
culturais operados pelos projetos de conquista, colonização e desenvolvimento
do capitalismo “deixou uma dívida incalculável ao patrimônio físico e sociocultural de
seus povos e territórios”. Muitas foram as tentativas de modernização da
Amazônia cujo resultado se não se não foi desastroso foi no mínimo duvidoso
quanto aos supostos resultados positivos. PDN, PDAM,
SPI,Projeto Sivam, Sipam, Calha norte, Rodovias,complexos hidrelétricos, POLAMAZÔNIA (Programa de Pólos Agropecuários e
Minerais da Amazônia, PPG-7, são alguns
dos projetos ou programas que talvez os Mundurukus nunca tenham ouvido falar e
que tampouco fará diferença a existência pretérita ou presentes dessas
iniciativas. Nenhum corrobora com sua reprodução material e imaterial enquanto
população indígena.
O fato é que as
históricas formas de adaptação humana foram substituídas, em sucessivos “ciclos
econômicos”,
por
políticas públicas nacionais inadequadas, precárias e fracassadas; por modelos
desprovidos de desconhecimento sobre as realidades regionais; pela negação das
populações tradicionais índias e caboclas e de suas formas de ocupabilidade;
pelo caráter interventivo da criação de suas fronteiras físicas e políticas;
pelos equivocados planejamentos à distância, enfim, por modos brutais de
destruição da biodiversidade e da sociodiversidade amazônica. Esta tragédia
deixou de ser silenciosa há alguns anos, mais por contingências internas e
externas do que por decisões da sociedade civil nacional. (FREITAS,2009,p.15)
Benchimol,
referindo-se a dinâmicas pretéritas de aniquilamento do patrimônio cultural
indígena, argumenta que a herança indígena
(cultura, visão de mundo, visão de Amazônia de mais justa) depois de desprezada
pelos “conquistadores d’armas,” fora substituída por estudos e imagens
(modernas) que concebem a “Amazônia mais em termos de grandeza,” visualizando-a
“em sua enormidade, sem pensar, ou pensando pouco, na sua fragilidade.” E mais,
essas investidas interpretativas em geral “bastante fracionadas e segmentadas”,
não possuem não “no sentido continental, os graus exigíveis de conexão,
correlação e interdependência necessários ao estudo sistematizado do fascinante
universo”. Terminam por rejeitar “a dúvida, a incerteza; prefere-se dar grandes
saltos no desconhecido, perdendo-se o senso de distinção entre o verdadeiro e o
falso, entre o fato e a ficção, entre a realidade e a fantasia”
(BENCHIMOL,1979,p.3-4)
Esse
último registro possui vital importância e significado no atual contexto
regional, nacional e mundial, pois o que se observa é que apesar de novas
teorias, discursos e práticas que se fundamentam por propostas alternativas de
desenvolvimento regional (Sustentável, integral, territorial e local etc.)
ainda há limites notáveis para alcançarem êxito, especialmente porque colocam em xeque propostas tradicionais de se
conceber o desenvolvimento, simplesmente negando ou suprimindo-as como formas
ou vestígios arcaicos e primitivos de se viver e produzir. Esquecem ou preferem
não considerar que as formas de vida e trabalho das múltiplas populações e
etnias da região possuem mitos, crenças e uma cosmovisão sofisticada sobre o
funcionamento do mundo, da natureza e da vida, onde o existir não é visto
apenas sob prisma econômico.
Ao que tudo indica, as formas
contemporâneas e predominantes de se pensar, conceber e projetar ações,
mecanismos, programas e projetos para Amazônia ainda se ancoram no modelo
hegemônico e ocidental de conceber o desenvolvimento: aquele orientado para o crescimento
econômico e para dinamização econômica a qualquer custo tendo em vista elevar
taxas e estatísticas do PIB; um desenvolvimento que historicamente se
caracteriza não pelo diálogo e respeito pela temporalidade das populações, mas
por práticas de genocídio e
epistemicídio. Modelo que historicamente evidenciou seu esgotamento pelo
conjunto de crises que tem acarretado, pelas consequências ecológicas geradas,
pelos padrões de justiça alcançados, pelas desigualdades, pela subordinação da
tecnologia para fins de competitividade e acumulação.
Poderiamos
dizer que, para além das dificuldades reais que bloqueiam um desenvolvimento
mais qualificado para as populações amazônicas, é importante registrar a
invenção ativa de imagens, ideias e representações da região que lhes
conceberam como subdesenvolvida, atrasada, inculta e polo negativo das diádes.
Em outras palavras, nosso subdesenvolvimento se, de um lado, foi e continua
sendo resultado histórico de políticas, programas e ações internas ou externas,
por outro lado, é tributário de uma construção ideológica assente nos
pressupostos da “máquina antropológica do ocidente”, que não apenas aniquilou
povos, práticas e saberes, como os classificou em uma ordem hierárquica de um suposto
processo civilizador no qual os países Europeus estavam na dianteira e
representariam o estado mais elevado de progresso da humanidade, sugerindo que
o “outro” (todos os demais povos) devesse guiar-se pela caminhada desses países
em uma perspectiva evolutiva de cariz linear. Foi no afã de realizar esse
trajeto esquemático e ideologicamente orientado rumo ao progresso – depois
substituído pela noção de desenvolvimento – que muitos povos, culturas e
civilizações se diminuíram ativa ou passivamente, subordinando-se cultural e
politicamente a uma monocultura de produção e civilização, afinal, os termos de
comparação (ciência é técnica por exemplo) naturalizados como representantes
indubitáveis do suposto desenvolvimento de um povo sempre lhes lembravam seu
lugar na inventiva escala da evolução humana.
Agora nos perguntamos: em que medida a construção dessa imagem (apresentada no início do texto) ou representação sobre Amazônia serve para explicar ou revelar sobre aqueles que erigiram ou inventaram essa arquitetura imaginária? Em que medida os contrapontos de atrasado, selvagem, pré-civilizado, vazio, inculto, primitivo, arcaico, sertão revelam sobre os nomeadores? Como não deixar de perceber que todo processo de classificação é um processo de dominação. Dos idos do ‘descobrimento’, passando pela colônia, império, república, regime militar até chegar ao período supostamente democrático, as Amazônias são destituídas de suas potencialidades criadoras via classificações, ou melhor violências simbólicas que lhes captura sua resistência através de processos de dominação política e expropriação econômica por parte de agentes internos e externos.
Mais
nem tudo é derrotismo ou fatalismo: A Amazônia já foi periferia, inventada como
periferia. No século XXI ela explode potentíssima como centro do mundo; o
centro habita nas suas entranhas e como registra Marilene Corrêa (2011) e Giuseppe Cocco (2009), a crise da relação
entre o centro e a periferia acena para superação em potencial, das dimensões
hierárquicas e deterministas que condicionam o habitar da Amazônia no Mundo, me
refiro os “ismos” que capturam suas energias insurgentes, colonialismo,
neocolonialismo, imperialismo, neoliberalismo. Esperamos que essa superação
ganhe contornos decisivos nas atuais lutas e resistências dos povos indígenas,
como os Mundurukus que atualmente desafiam representações, conceitos e práticas
podres que o atual neodesenvolvimentismo busca ainda dar vida.
COCCO,
Giuseppe. Mundobraz: O devir-mundo do brasil e o Devir-Brasil do mundo. Editora
Record, RJ,2009
BENCHIMOL,Samuel.
Uma Oikopolítica para Amazônia.
Manaus, 1979.106 pg. Edição xerografada.
OLIVEIRA,
Lucia Lippi. Natureza e identidade: o
caso brasileiro. Desigualdade & Diversidade – Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio,
nº 9 ago/dez, 2011, pp. 123-134
FREITAS, Marilene Corrêa da Silva. As metamorfoses
da Amazônia, Manaus, Ed. da
Ufam, 2000
________,Marilene
Corrêa da Silva. Os amazônidas contam sua história:
Território, povos e populações. 2009