“A Amazônia tem sido
vítima de suas incógnitas e de sua própria grandeza. A enormidade e
diversificação de sua massa crítica continental de terras, selvas e rios,
compõem os autos de um processo contraditório, no qual perguntas ficam sem
respostas, acusações sem defesa, oportunidades sem realizações, destruições sem
usufrutos, e até custos sem benefícios”
Embora
publicado na década de 70, o livro de Samuel Benchimol "Uma Oikopolítica para Amazônia" lança raízes em suas
reflexões das duas décadas precedentes, duodécada que o oferece os desafios,
problemas e a maturidade necessária para pensar a
formulação de um modelo teórico e político para dar conta da complexidade
amazônica em sua multidimensionalidade.
Uma oikopolítica para
Amazônia, enquanto publicação, é resultado de sua participação
no Simpósio nacional da Amazônia promovido pela Comissão do interior da Câmara
dos Deputados em 1979. Trata-se de uma oportunidade que Benchimol teve de
apresentar os pressupostos de uma nascente ciência, a oikopolítica, “nova
ciência interdisciplinar na fronteira da economia, da ecologia, da sociologia e
da política” para lidar com o “estudo da complexa Amazônia. No entremeio da
explicação de sua proposta apresenta a Amazônia em sua megatonagem geográfica,
botânica e fluvial, registrando seu potencial econômico (“painel
Oikopolítico”), a grandeza de suas riquezas e seus possíveis usos, considerando
os erros e dilemas envolvendo o aproveitamento desses potenciais. Não deixa,
como de costume, de sugerir opções estratégicas (política florestal, agrícola,
pecuária) face as ameaças e desafios que se apresentavam. Opções ancoradas em
sua Oikopolítica para Amazônia.
Além de conceber uma Amazônia de
múltiplas vocações (Varzeana, Fluvia/Lacustre, Mineral, Hidrelétrica,
Florestal, e Industrial) Benchimol realiza críticas, faz alertas, registra
aspectos negativos da conjuntura do desenvolvimento amazônico e, por fim, acena
para possibilidade de uma “política sadia” para Amazônia, pois esta “tem
finitude e fragilidade”.
Do
mapeamento, prospecção e registro de descobertas cujo potencial pode garantir o
pagamento da dívida externa brasileira, o autor realiza algumas críticas
vinculadas ao uso desses recursos, uma delas se encaminha aos planejadores da
Sudam relativos aos seus erros expressos na criação do “Mega boi” e “Mega
selva”.[1] O
primeiro de resultados econômicos duvidosos, “mas quase certos pela destruição
do ambiente”, concebido longe dos mercados consumidores e desconsiderando a
necessidade de pesquisa “agronômica, pedológica e florestal para se determinar
até que ponto a agressão ecológica desequilibraria o meio ambiente”. O segundo
se consolida como “mercantilização do processo do aproveitamento indiscriminado
da floresta”, evidenciadas através do amplo interesse de realizar a “cubagem da
floresta” para geração de estimativas de seu preço. Um e outro se constituíam
em “ameaça e desafio” para o autor, devendo urgentemente ocorrer suas
avaliações “antes que seja tarde demais, a fim de que o bom senso e a
perspectiva histórica do desenvolvimento sejam considerados em todos os seus
desdobramentos atuais e futuros” (BENCHIMOL, 1979,p.76)
O
autor alerta (sem catastrofismos, combatidos em outras ocasiões) para o ritmo
de devastação em curso na região decorrente da abertura de estradas para a
integração amazônica, mas que despertou a cobiça das “capitanias empresariais
bovinas”[2] e
dos latifundiários e que oportunamente foram beneficiados rastros dos projetos
do Mega-boi e Giga-Selva , “aqueles convertendo ricas florestas em pastos
pobres e estes derrubando árvores nobres e de lei, vendidas a preços vis na
origem, extinguindo a flora e a fauna” (BENCHIMOL, 1979,p.29).
Ao
registrar que a Amazônia é “uma das grandes regiões piscosas do Brasil
interior” (item 26 do seu “Painel Oikopolítico”, Cap. III) alerta para
possibilidade de uma rápida chegada ao “limite de desfrute de auto-sustentação
oikopolítica, além do qual poderíamos mergulhar no desastre da pesca ambiciosa
e predatória”, a qual pode levar “à extinção das espécies, e observar a
manutenção de uma taxa ótima para uma pesca auto-sustentada”. Prossegue
afirmando que,
Com
a abertura dessa nova frente comercial, poderemos causar um holocausto maior do
que a destruição da floresta. É que o homem amazônida vive na beira do rio e
depende do peixe para comer e viver. (BENCHIMOL,1979,p.29)
Neste
item como na maioria dos outros Benchimol reclama a necessidade indispensável
de se intensificar os estudos científicos na região, tendo em vista respaldar
as ações políticas e os projetos de desenvolvimento sem “dar um salto no
desconhecido”, o que poderia trazer sérios problemas para o ecossistema e
populações amazônicas.
No
item 1.12 “Barragens e uso florestal” de “Vocações Amazônicas” (Cap. V) fez uma alerta premonitória sobre a
construção da hidrelétrica de Balbina, sugerindo na ocasião que se realizasse o
desmatamento da área a ser alagada fazendo-se uso das árvores das florestas,
inclusive para financiar o custo da hidrelétrica, caso contrário, “o afogamento
da floresta e o seu apodrecimento poderá causar danos irreparáveis às turbinas,
havendo o risco de agentes químicos da decomposição destruírem tudo sob às
águas, tornando inúteis os investimentos”. O que de fato aconteceu. E na
ocasião indagava:
“Por
que então, ao invés de se dar um salto no desconhecido, não se concentram
esforços de exploração madeireira nessas áreas de barragens, que terão de
inundadas, ficando a floresta inteiramente devastada” (BENCHIMOL, 1979,p.56-57)
Além
dessas alertas, o autor realça que muitas ações e processos em curso que
pretendem desenvolver a região em âmbito urbano e rural , a despeito de seus
aspectos positivos, tem gerados novos problemas e estão longe de equacionar os
antigos, daí faz notar os problemas de urbanização, de mortalidade infantil,
subnutrição, hanseníase, as parcas vagas oferecidas nas universidades
Após
esse preâmbulo que sintetiza parte das proposições que perpassam seu texto,
cabe-nos apresentar as linhas gerais de sua Oikopolítica.
Benchimol
argumenta que a herança indígena
(cultura, visão de mundo, visão de Amazônia de mais justa) depois de desprezada
pelos “conquistadores d’armas,” fora substituída por estudos e imagens que
concebem a “Amazônia mais em termos de grandeza,” visualizando-a “em sua
enormidade, sem pensar, ou pensando pouco, na sua fragilidade.” E mais, essas
investidas interpretativas em geral “bastante fracionadas e segmentadas”, não
possuem não “no sentido continental, os graus exigíveis de conexão, correlação
e interdependência necessários ao estudo sistematizado do fascinante universo”.
Terminam por rejeitar “a dúvida, a incerteza; prefere-se dar grandes saltos no
desconhecido, perdendo-se o senso de distinção entre o verdadeiro e o falso,
entre o fato e a ficção, entre a realidade e a fantasia” (BENCHIMOL,1979,p.3-4)
Oferecendo
exemplos das implicações desses enfoques o autor argumenta que “a economia pode
nos levar à cupidez; a ecologia pode nos conduzir ao imobilismo; a política
pode nos forçar a aceitar valores e modelos perversos”. É diante desse cenário
que, segundo autor, urge a necessidade, “ uma ciência deveras abrangente, multi
e interdisciplinar, ciência que há uma década proponho – a OIKOPOLÍTICA,
necessária ao estudo da complexa amazônica.” Acreditava que a falta de uma
Oikopolítica era o motivo pelo qual a
poesia e o romance amazônico tenham se proliferado “em contraste com os
poucos estudos científicos da gente amazônica, sem compromissos com o
histórico, só com o verossímil”. Essa incapacidade de “percepção analítica”
teria levado muito, inclusive o autor “como réu confesso, a visualizar a
Amazônia através de sua megatonagem física, da sua grandeza continental.
(BENCHIMOL,1979,p.6)
Referindo-se
a esses enfoques enfatiza que,
alguns desses
decorrentes conceitos são válidos, se os números em que se apóiam são
verdadeiros. Muitos porém, devem ser considerados com a cautela e senso
crítico, para que o infinito geográfico e a potencialidade econômica não
conduzam a um modelo político perverso, muito embora construído com a melhor
das intenções, porém deturpadas pela inocência útil, falta de vivência, pressa
improvisada, sabedoria arrogante ou incompetência treinada, auto-suficiência ou
simplesmente vontade de não ser omisso e tentativa de fazer algo para
justificar as presença.
(BENCHIMOL, 1979,p.6)
Para
não se incorrer no risco de, através desses enfoques, se construir modelos
políticos perversos para Amazônia Benchimol sugere que “somente um enfoque
oikopolítico, de caráter interdisciplinar, abrangente da economia, da ecologia
e da política, poderá permitir a construção de um modelo mais justo e
adequado”. Acreditava que somente a nova
ciência, a Oikopolítica, por
“favorecer um
estudo universal combinado do Homo Sapiens, de Lineu, que pertence ao ecólogo,
com o Homo Oeconomicus, de Adam Smith, que se insere no setor produtivo, e com
o Zoon politikon, de Aristóteles, que pertence ao domínio da boa política,
seria capaz de repensar e reavaliar a nossa Amazônia.Enquanto isso não se
realiza resta repetir conceitos faraônicos, apologéticos, ufanísticos, hiperbólicos,
alguns até triunfalistas. (BENCHIMOL, 1979,p.7)
É
essa visão ampla, holística, oikopolítica que inspirava o pensamento de
Benchimol. Nela se combinariam “os
aspectos econômicos e os aspectos políticos, não apenas justapostos ou
paralelos, mas interligados por dependência, cada aspecto com suas
peculiaridades, processando-se a integração de todos os seus componentes”.(BENCHIMOL,1979,p.33)
Mais
adiante reafirma sua perspectiva de integração de saberes necessárias para a o
entendimento adequado da Amazônia:
A Oikopolítica
reúne as fonte da economia, da ecologia e da política, interdisciplinarmente,
promovendo uma visão multifocal e sugerindo uma compreensão globalizada. No
caso amazônico, a Oikopolítica é abrangente. A Amazônia é vista como um
complexo, e só assim podemos compreender, holísticamente, as suas peculiaridades
e diferenciações, sem violentar e fragmentar a sua multivocacionalidade.
(BENCHIMOL,1979,p.36)
Benchimol
reconhece que se, por um lado, a metodologia oikopolítica, “do ponto de vista
intercientífico”, não apresentaria grandes dificuldades teóricas e conceituais,
sua operacionalização, por outra lado, encontraria, dificuldades diversas, “pois
os diferentes aspecto muitas vezes entram em conflito e se chocam, ao se defrontarem a realidade
amazônica”. Sublinha que especialistas de distintos “níveis profissionais
tendem a encarar essa realidade sob óticas próprias, unilaterais, para, para
não dizer paroquiais”. Os ecólogos tenderiam a “defender a preservação da Amazônia a qualquer
custo”; os economistas perceberiam-na nas perspectiva de sua utilidade e
rentabilidade; os políticos, “voltados para o compromisso histórico da nação”, teriam
receio “que a sua exploração” descambasse “para a espoliação e alienação”.
(BENCHIMOL,1979,p.43)
Diante
desse impasse o autor finaliza seu texto registrando a dificuldade de conciliar
os diversos enfoques e que a superação dessa dificuldade exigiria
uma mudança de
atitudes e de comportamento em cada especialista envolvido, para que adquiram
uma visão mais ampla da multivocacionalidade, habilitando-se cada um à
conciliação, embora admitindo riscos calculados, para elaboração de um projeto
consensual e abrangente, que leve em conta, sobretudo, os interesses do homem
amazônida como integrante da nacionalidade brasileira.(BENCHIMOL, 1979,p.43)
Nesse registro e em outros
argumentos de Benchimol fica evidente a defesa da centralidade dos interesses,
visões e valores do homem amazônida como elementos indispensáveis para balizarem qualquer proposta científica, política ou
econômica que se oriente para Amazônia.
Não
há dúvidas de que além de ciência e metodologia empenhadas em interpretar e
analisar a complexidade amazônica – combatendo simplificações e fragmentações -
a Oikopolítica se constitui igualmente em instrumento de caráter político para
orientar ações, programas e projetos para uma estratégia de desenvolvimento
integral da Amazônia, estratégia que tenha como prioridade, de um lado, a
valorização dos valores e conhecimentos acumulados pela indigenidade e pelos
caboclos e, de outro, considera a
diversidade ou o mosaico de Amazônias em suas diferenças e particularidades. E,
por fim, que sirva de instrumento de combate a pobreza, as disparidades
inter-regionais, a concentração e desperdício de recursos, aos problemas de
ocupação tematizados em seu painel Oikopolítico.
Esse é o panorama geral dessa publicação na qual o autor apresenta as linhas gerais de seu modelo, anota as dificuldades operacionais de pô-lo em funcionamento, mapeia e problematiza alguns enfoques (racionalista, utilitarista,empírico-tradicionalista,predatório radical que buscam explicar e procurar soluções para os problemas amazônicos, realiza um inventário de suas potencialidades (multivocacionalidades) ao mesmo tempo em que critica e alerta para as repercussões negativas dos projetos em curso, sempre sugerindo opções políticas para suas readequações. E, no mais, em suas reflexões o autor já inseria como variável de análise em suas problematizações as noções de incerteza, caos, entropia e complexidade, tão em voga nos dias que se seguem[3].
Referência
BENCHIMOL,Samuel.
Uma Oikopolítica para Amazônia.
Manaus, 1979.106 pg. Edição xerografada.
[1] “O boi e a floresta, por
implicarem agressão ecológica à tropicologia amazônica, têm que ser melhor
estudados para se evitar a planetarização amazônica, não mais pela
intocabilidade panteísta, mas pela desertificação substitutiva” (p.77)
[2] “ Como se fosse o paraíso
terrestre dos grandes latinfúndios, a região foi loteada para 337 capitanias
empresariais bovinas” (p.21)
[3]
À título de informação
importa registrar que a incorporação da noção de entropia emerge em um contexto
no qual o autor refletia sobre as “necessidades e vantagens interdisciplinares;
refletindo senti que brotava as primeiras idéias oikopolíticas, socorridas por
um conceito do romeno Gerogescu, citado por Celso Furtado in O Mito do
Desenvolvimento econômico (...) Daí
concluí-se que toda economia moderna é altamente entrópica, altamente
desorganizada, altamente poluidora” (BENCHIMOL,1979,p.38)
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