terça-feira, 29 de outubro de 2013

Nasce uma vida, renova-se os dilemas do mundo


O sentimento profundo de amor e alegria que irradia dos pais no nascimento de uma criança é um momento de inflexão, de ruptura na vida dos pais e simultaneamente de renovação dos dilemas do mundo. Em relação a ruptura podemos afirmar que o nascimento de uma criança marca um novo momento na vida dos pais, temporalidade outra onde nossas vidas se inscrevem, se perdem em uma preocupação continuada de manter-se vigilante; nesse novo tempo estamos sempre atentos aos movimentos, choros, gemidos desse novo ser, se não estamos por perto a intuição logo te leva a uma busca desenfreada para encontrá-lo se algo estiver errado.
Sua experiência do tempo social e suas 24h se alteram profundamente assim como sua vivência nos espaços sofre limitações. Sua liberdade de manejar seu tempo-espaço sofre restrições para você criar as condições e as possibilidades de ampliar e diversificar a experiência do tempo-espaço de um novo ser que se inicia seu desenvolvimento social, moral e intelectual.
De repente seu tempo torna-se mais curto, contudo, mais produtivo. Aos poucos saberá extrair as atividades ou inatividades supérfluas que faziam parte da sua experiência do tempo. Desta maneira
É assim que a civilização avança; talvez menos pelo avanço técnico e científico e mais pela capacidade de subtrairmos nossa liberdade em prol da liberdade dos pequenos que precisam de cuidado e amor para desenvolverem-se e tornarem-se autônomos e capazes de reproduzir essa atitude moral.
                Sua experiência financeira não escapa à mudanças profundas,  onde a preocupação em manter saudável sua nova razão de existir torna-se imediatamente central em sua existência. Desta maneira, a administração financeira requalifica-se ou se inicia em sua vida de cuidados. O planejamento emerge como ferramenta essencial do seu cotidiano; planeja-se o tempo, o reordenamento do espaço de sua casa, seus rendimentos através do orçamento e até seus objetivos de vida em seu sentido mais amplo. Aos poucos você se metamorfoseia, é completamente outro; um outro mais cuidadoso,amoroso e vigilante.

Renovação dos dilemas do mundo

                Certa vez em uma aula do Professor Antonio Carlos Witkoski mobilizou Hanna arendt  para afirmar que toda vez que uma criança nasce no mundo os dilemas e problemas deste mundo são igualmente renovados. É assim que ao me deparar com o nascimento da minha filha me defrontei irremediavelmente com alguns desses problemas ao frequentar uma maternidade pública durante alguns dias.
                Não me alongarei demais nas descrições da experiência, registrarei  apenas alguns fatos que compõem o cenário de renovação cotidiana de problemas públicos.
                Ao chegar na recepção da maternidade Ana Braga ás 11 da noite a  impressão é que não havia nenhuma futura mãe esperando o nascimento de sua criança, imperava um silêncio sepulcral, contudo, após a internação da minha esposa tudo mudou; o ambiente era absolutamente outro, os gritos e gemidos eram constantes, o atendimento rarefeito com médicos dormindo em bancos e corredores com mães em macas desconfortáveis esperando a manhã do dia seguinte para subirem para os leitos.
                Nesse tempo da chegada ao parto da Viviana ( minha filha ) prefiro não comentar mais detalhadamente, basta dizer que quando foram vê-la a criança já estava praticamente nascendo e que houve uma demora de 10 a 15 no meio do parto apenas para esperar alguém para limpar o chão para o médico retirar a criança. Nascida às 4:45 da manhã subiu com a mãe para o leito apenas 11 horas da manhã. Como  o parto foi normal em no máximo 2 dias ela sairia da maternidade, não fosse a demora de um simples tipagem sanguínea da criança que nunca chegava, chegando a ser solicitada duas vezes para turnos de trabalho distintos que se acusavam reciprocamente de não terem realizado o serviço. Saímos em 4 dias, sim saímos pois acompanhei de perto todos os dias. Poisé, apesar da demora ainda não tenho a tipagem sanguínea da Viviana. Imaginem que essa situação não foi única, ao lado da 109, a 110 alegou que estava esperando igualmente o mesmo exame a mais de um dia e que tiraram sangue de sua criança duas vezes, deixando a mão do nascituro inchada.
                Tudo na maternidade é numerado, o leito tem um tipo de numeração existencialista, o nome da mãe e do bebê não importam, fundamental é saber se o 120 está bem, se o 115 já tomou remédio e assim por diante, número que a cada 12 horas é consultado pela mudança da equipe de trabalho. O número de consultas religiosas também é notório, todos os dias e , por vezes, mais de uma vez perguntavam as mães se eram “crentes” e entregavam uns santinhos para reorientar algumas que porventura tenham se “desviado do caminho”. Os efeitos dos santinhos é assunto de fé, assim como passar por “crente” para ficar em “paz” igualmente o é.
                Por fim, vale registrar que limpeza e alimentação eram totalmente instáveis quanto aos sabores e a qualidade; havia almoços dignos de restaurante “caro” assim como frango pitiú sem um limãozinho. Os corredores dos 3 andares com seus 6 leitos em cada quarto expressavam bem essa inconstância do sabor alimentar, geralmente servido em torno de uma hora da tarde, muito tarde segundo mães famintas. Para não me alongar basta mencionar que ao chegar na maternidade vi um estacionamento enorme para os médicos onde era expressamente proibida estacionar carros de não-médicos, sob o risco de enfurecimento do médico que ver seu lugar ocupado segundo o guarda de plantão. A enormidade do espaço e o  vazio  do estacionamento na chegada estavam imediatamente ligados ao déficit de atendimento no interior da maternidade; vi o médico que fez o parto da minha esposa e o pediatra no último dia, o restante dos funcionários eram estagiários e algumas enfermeiras que cuidavam de 2 a 3 leitos por quarto.  Termino esse breve registro muito tranquilo, minha mulher teve atendimento razoável e minha filha está com saúde, diferente de uma mãe que veio saber através da vó que sua criança fora trocada. O barraco foi terrível, assim como o corporativismo para cobrir a merda.
É assim que a profunda felicidade que me comovia durante os primeiros dias de nascimento da minha filha se confundia com um profundo mal-estar diante de problemas públicos diariamente vivenciadas por nossa população.