O sentimento
profundo de amor e alegria que irradia dos pais no nascimento de uma criança é
um momento de inflexão, de ruptura na vida dos pais e simultaneamente de
renovação dos dilemas do mundo. Em relação a ruptura podemos afirmar que o
nascimento de uma criança marca um novo momento na vida dos pais, temporalidade
outra onde nossas vidas se inscrevem, se perdem em uma preocupação continuada
de manter-se vigilante; nesse novo tempo estamos sempre atentos aos movimentos,
choros, gemidos desse novo ser, se não estamos por perto a intuição logo te
leva a uma busca desenfreada para encontrá-lo se algo estiver errado.
Sua
experiência do tempo social e suas 24h se alteram profundamente assim como sua
vivência nos espaços sofre limitações. Sua liberdade de manejar seu
tempo-espaço sofre restrições para você criar as condições e as possibilidades
de ampliar e diversificar a experiência do tempo-espaço de um novo ser que se
inicia seu desenvolvimento social, moral e intelectual.
De repente seu
tempo torna-se mais curto, contudo, mais produtivo. Aos poucos saberá extrair
as atividades ou inatividades supérfluas que faziam parte da sua experiência do
tempo. Desta maneira
É assim que a
civilização avança; talvez menos pelo avanço técnico e científico e mais pela
capacidade de subtrairmos nossa liberdade em prol da liberdade dos pequenos que
precisam de cuidado e amor para desenvolverem-se e tornarem-se autônomos e
capazes de reproduzir essa atitude moral.
Sua
experiência financeira não escapa à mudanças profundas, onde a preocupação em manter saudável sua
nova razão de existir torna-se imediatamente central em sua existência. Desta
maneira, a administração financeira requalifica-se ou se inicia em sua vida de
cuidados. O planejamento emerge como ferramenta essencial do seu cotidiano;
planeja-se o tempo, o reordenamento do espaço de sua casa, seus rendimentos
através do orçamento e até seus objetivos de vida em seu sentido mais amplo. Aos poucos você se metamorfoseia, é completamente outro; um outro mais cuidadoso,amoroso e vigilante.
Renovação dos dilemas do mundo
Certa
vez em uma aula do Professor Antonio Carlos Witkoski mobilizou Hanna
arendt para afirmar que toda vez que uma
criança nasce no mundo os dilemas e problemas deste mundo são igualmente
renovados. É assim que ao me deparar com o nascimento da minha filha me
defrontei irremediavelmente com alguns desses problemas ao frequentar uma
maternidade pública durante alguns dias.
Não
me alongarei demais nas descrições da experiência, registrarei apenas alguns fatos que compõem o cenário de
renovação cotidiana de problemas públicos.
Ao
chegar na recepção da maternidade Ana Braga ás 11 da noite a impressão é que não havia nenhuma futura mãe
esperando o nascimento de sua criança, imperava um silêncio sepulcral, contudo,
após a internação da minha esposa tudo mudou; o ambiente era absolutamente outro,
os gritos e gemidos eram constantes, o atendimento rarefeito com médicos
dormindo em bancos e corredores com mães em macas desconfortáveis esperando a
manhã do dia seguinte para subirem para os leitos.
Nesse
tempo da chegada ao parto da Viviana ( minha filha ) prefiro não comentar mais
detalhadamente, basta dizer que quando foram vê-la a criança já estava
praticamente nascendo e que houve uma demora de 10 a 15 no meio do parto apenas
para esperar alguém para limpar o chão para o médico retirar a criança. Nascida
às 4:45 da manhã subiu com a mãe para o leito apenas 11 horas da manhã.
Como o parto foi normal em no máximo 2
dias ela sairia da maternidade, não fosse a demora de um simples tipagem sanguínea
da criança que nunca chegava, chegando a ser solicitada duas vezes para turnos
de trabalho distintos que se acusavam reciprocamente de não terem realizado o
serviço. Saímos em 4 dias, sim saímos pois acompanhei de perto todos os dias.
Poisé, apesar da demora ainda não tenho a tipagem sanguínea da Viviana.
Imaginem que essa situação não foi única, ao lado da 109, a 110 alegou que
estava esperando igualmente o mesmo exame a mais de um dia e que tiraram sangue
de sua criança duas vezes, deixando a mão do nascituro inchada.
Tudo
na maternidade é numerado, o leito tem um tipo de numeração existencialista, o
nome da mãe e do bebê não importam, fundamental é saber se o 120 está bem, se o
115 já tomou remédio e assim por diante, número que a cada 12 horas é
consultado pela mudança da equipe de trabalho. O número de consultas religiosas
também é notório, todos os dias e , por vezes, mais de uma vez perguntavam as
mães se eram “crentes” e entregavam uns santinhos para reorientar algumas que
porventura tenham se “desviado do caminho”. Os efeitos dos santinhos é assunto
de fé, assim como passar por “crente” para ficar em “paz” igualmente o é.
Por
fim, vale registrar que limpeza e alimentação eram totalmente instáveis quanto
aos sabores e a qualidade; havia almoços dignos de restaurante “caro” assim
como frango pitiú sem um limãozinho. Os corredores dos 3 andares com seus 6
leitos em cada quarto expressavam bem essa inconstância do sabor alimentar,
geralmente servido em torno de uma hora da tarde, muito tarde segundo mães
famintas. Para não me alongar basta mencionar que ao chegar na maternidade vi
um estacionamento enorme para os médicos onde era expressamente proibida
estacionar carros de não-médicos, sob o risco de enfurecimento do médico que
ver seu lugar ocupado segundo o guarda de plantão. A enormidade do espaço e o vazio do estacionamento na chegada estavam
imediatamente ligados ao déficit de atendimento no interior da maternidade; vi
o médico que fez o parto da minha esposa e o pediatra no último dia, o restante
dos funcionários eram estagiários e algumas enfermeiras que cuidavam de 2 a 3
leitos por quarto. Termino esse breve
registro muito tranquilo, minha mulher teve atendimento razoável e minha filha
está com saúde, diferente de uma mãe que veio saber através da vó que sua
criança fora trocada. O barraco foi terrível, assim como o corporativismo para
cobrir a merda.
É assim que a
profunda felicidade que me comovia durante os primeiros dias de nascimento da
minha filha se confundia com um profundo mal-estar diante de problemas públicos
diariamente vivenciadas por nossa população.