A
sociologia desmistifica, revela, critica e, por consequência, desnaturaliza
relações, processos e estruturas de dominação, expropriação, violência, rompendo
com mecanismos que reproduzem misérias e desigualdades, tidas como componentes “naturais”
de uma sociedade pseudodemocrática.
Sim!
A Sociologia é geradora de consciências reflexivas, rebeldes e democráticas. É uma
arma de combate que substitui e anula os automatismos dos indivíduos e forja atores com
competências para a realização da crítica, julgamentos e estratégias
argumentativas.
A
sociologia é reconhecida pelo incômodo que causa a “ordem social” e esse
incômodo reside precisamente no fato dela questionar o estado de coisas
vigentes, de não aceitar como natural e dado o funcionamento e a dinâmica das coisas, relações e
fenômenos. Crenças, dogmas e a rotina auto-evidente são inimigos da sociologia
reflexiva, pois teimam em nos conformar ao poder do senso comum e do seu quadro
referencial supostamente natural, de certezas inquestionáveis que dotam de
lógica e sentido o nosso estar no mundo; nos situa ,organiza e explica nossas
condições de vida.
A
sociologia, pois, se constrói contra as rotinas que são produtoras e
legitimadoras de desigualdades; que conferem poder e riqueza a alguns e
incapacidade de ação e pobreza para outros. Na medida em que se contrapõe a
essas rotinas a sociologia se converte em um componente fundamental para a
transformação social, sobretudo porque coloca a luta pelos direitos e pela
cidadania como prática que deve ser exercida cotidianamente diante do poder
constituído e dos privilégios que ainda reproduz. Como salienta Bauman e May
(2010,p.83) o cerne da Sociologia só faz sentido no momento em que estiver
sendo incorporado pelo conjunto da cidadania e não cada vez mais mantido à
parte. Um cerne, portanto, de uma sociologia reflexiva e crítica
A
sociologia não apenas evidencia que não existem fatalismos como sugere
múltiplas formas e interpretações para construção sociológica e política das
trajetórias individuais e coletivas, regionais e nacionais. Desta maneira
amplia não somente os níveis de percepção da realidade como as margens de
liberdades individuais e coletivas, mostrando a responsabilidade histórica dos
homens na construção do mundo social e no combate consciente as mazelas e
desigualdades que afligem a sociedade. Por isso, talvez seja uma ferramenta
fundamental para fornecer os léxicos, as tendências práticas e interpretações
apropriadas para viabilizar as mudanças indispensáveis para uma sociedade justa
e democrática. Afinal, como diria Octávio Ianni (2011), a sociologia é uma forma de
autoconsciência científica da realidade social, realidade que está sempre em
movimento, formação e transformação resultante das lutas, impasses e problemas
que desafiam os homens, grupos e coletividades.
Isso
não significa que a perspectiva sociológica é a única a operar tais
realizações, mas talvez por ter nascido em um momento de crise e sobre as
crises sempre analisar, terminar por lidar de maneira particularmente privilegiada
com as causas manifestas e latentes que originam os problemas sociais,
políticos e culturais expresso nas lutas, impasses e problemas acima
registrados. Não poderia ser diferente a
sociologia é considerado por alguns até
como ciência da crise, pois sempre esteve enredada com grandes efervescências e
irrupções sociais, aliás, o marco de seu
nascimento se inscreve em um mundo de amplas transformações sociais que
compreendiam guerras, revoltas, rupturas seculares e novos empreendimentos
culturais.
De forma ambivalente, podemos
afirmar que a sociologia, seu avanço, contribuição e significação para
sociedade corresponde às suas crises contínuas, aos ataques frequentes às suas
bases e pressupostos causados pelas transformações sociais. Crise social e
crise da sociologia convivem e se nutrem reciprocamente.
Pode-se afirmar que esse - a crise da sociologia - é um indicativo de que
ela está em ótima forma. A sua crise corresponde por um lado as características
de seu próprio objeto que é sujeito ao mesmo tempo; um sujeito em sociedade,
nas suas relações de negação e afirmação, dependência e interdependência, tecidas
nos mais variados e distintos níveis de experiência e sociabilidade.
Sua
crise (que é seu modo ser, pois possui como característica autoquestionar-se e
duvidar sistematicamente de toda e qualquer certeza ) reflete a dinâmica da
sociedade; as ações e motivações dos seus indivíduos, expressa os movimentos de
tensão e indignação, corresponde aos impulsos e sentimentos coletivos em
ebulição. Indica as bases contraditórias e assimétricas sobre a qual se assenta
as relações em sociedade.
Sobre
esse aspecto, poderíamos afirmar que as crises convertem-se em um “objeto”
especialmente atraente para a sociologia, pois permitem a realização de
reflexões e diagnósticos que captam uma conjuntura em ebulição, momento
propício para explicitação das causas, razões, motivos e forças que configuram ou
delineiam certo status quo. Nesse
sentido, é possível afirmar que há uma diversidade de modalidades ou tipos de
crise, com diferentes escalas, e graus variados de impacto; Quanto à
modalidade, há crises econômicas, sociais, políticas, ambientais, culturais,
identitárias etc; Quanto às escalas, podemos afirmar que há crises em escala
individual, familiar, grupal e a societária. Cabe apenas assinalar que em
última análise todas essas crises possuem conexões entre si, se condicionam e
nutrem reciprocamente, de modo que não há crise que se engendra por si, de
forma independente, mas guarda uma relação mais ou menos significativa com
outras modalidades, escalas e implicações de outras crises. A crise é sempre
relacional, sempre social. Como nos lembra Santos, a noção de crise deriva de uma velha palavra
de origem grega ( crisis ) que significava separação, abismo e também juízo.
Lembra-nos que “o existir é um separar-se, uma crisis, um abismo”, pois “tudo
quanto existe se separa, afirma abismos”. (SANTOS, 1959,p.12)
Mas
como bem adverte Santos a separação e o abismo é fundamental para crítica,
especialmente para crítica sociológica;
Nós não podemos viver sem a crisis,
e não podemos viver com ela(...) É a crisis que leva o homem a crítica(..) Por
isso quer vencê-la, vadear o abismo,
ultrapassá-lo, que é o devir, o constante transmutar-se das coisas. ( SANTOS,
1959, p.13).
A
crise, nesse sentido, seja em suas formulações teóricas ou práticas, possui uma
dimensão muito positiva para o desenvolvimento de uma análise sociológica, pois
é um indicativo da força ativa e transformadora dos agentes sociais na
construção e direcionamento da história. É a emergência da tomada de
consciência da crise “que leva o homem à crítica”, revelando a dinâmica
histórica do movimento social em contraponto a estática funcional própria do
poder instituído e suas instituições que tendem ao fechamento buro e
democrático.
A crítica implica, pois. na mudança de
ordenamentos estabelecidos e engessados do ponto de vista institucional. Além disso, diz respeito à atualização e
renovação de instituições sociais e seus
mecanismos de reprodução social, a exemplo das formas de pensar, sentir e agir
que orientam indivíduos e coletividades. Serve como ponto de partida de novas
obrigações, agendas e lealdades.
Trata-se,
enfim, de um sinalizador de novos horizontes e utopias, expressos em novas
relações em diferentes escalas entre Estado, economia, política e sociedade. A
crise, ou crises como veremos adiante, marca uma período de transição, de
amplas mudanças onde, como diria Gramsci[1], o novo tateia
seu nascimento e o velho teima em resistir. O devir crísico do mundo é
surpreendente e a sociologia tem papel fundamental no sentido de explicar e
compreender os dilemas em aberto pelas conjunturas crísicas; prenha de forças e
possibilidades.
Por
fim, sem celebrar demasiadamente o horizonte crítico da perspectiva sociológica,
que apesar de singular não é insubstituível , poderíamos afirmar, ancorados em
Bauman (2010) que uma das caracteristicas fundantes da sociologia e do
pensamento sociológico é seu “poder de antifixação;
Ele torna flexível aquilo que
pode ter sido a fixidez opressiva das relações sociais e, ao fazer isso, abre
um mundo de possibilidades. A arte de pensar sociologicamente consiste em ampliar
o alcance e a efetividade da liberdade(...) A sociologia pensa de forma
relacional para nos situar em redes de relações sociais(...) Nesse sentido,
pensar sociologicamente significa entender de um modo um pouco mais completo
que nos cerca, tanto em suas esperanças e desejos quanto em suas inquietações e
preocupações” ( Bauman e May. Pg.26 )
Eis
uma face singular da sociologia, ela diz respeito a desfamiliarização; tonar
questionável o evidente e auto-explicativo, de modo a evidenciar que as coisas
e estados existentes são construídos social, material e simbolicamente. Três
argumentos, a meu ver, sintetizam a expressão sociológica em sua potencialidade
crítica:
a) A
sociologia nos indica que os fenômenos sociais que nos rodeiam e dos quais
participamos ativa ou passivamente resultam de dinâmicas processuais, cujas
teias de relações, ações e intenções, situados em um contexto especifico, nos
fornecem o quadro explicativo do qual emergem as tendências e orientações,
sentidos e razões que nos situam e nos conformam compreensivelmente neste
mundo.
b) A
sociologia diz respeito a politização, visto que nos situa no mundo enquanto
atores que constroem socialmente seu destino, através de ações orientadas,
intenções veladas e projetos ousados. Construir socialmente nosso destino não
significa projetarmos e construirmos uma vida ideal, de modo quase arbitrário e
supostamente isolado das coações externas e condicionamentos sociais de todas
as espécies. Significa,pois, termos compreensão e consciência de que, apesar
dos imperativos sociais que condicionam nossas ações e projetos, nós possuímos
uma margem de liberdade e controle para atuarmos nos rumos e tendências que a
vida segue, assegurando alternativas de caminhos mais seguros e com menos instabilidade para
consecução de nossos projetos de vida.
c) Por
fim, e em último lugar, a sociologia não apenas explica que somos partes de uma
organização social e que podemos nos guiar consciente e politicamente nesse
habitat coletivo, sugere sobretudo, que as formas de viver e conviver são
historicamente construídas e que as formas contemporâneas de dominação,
hierarquia, exploração, alienação, desigualdades e outras contradições são
resultado dessa construção. E como resultado de uma construção social, podem
socialmente serem desestruturadas e reconstruídas segundo outros ideais de
sociedade, economia e política.
Para
narrativa sociológica da realidade, sempre outros mundos são possíveis!
Bibliografia
BAUMAN, Zigmunt & MAY, tim. Aprendendo a
pensar com a sociologia. Rio de Janeiro. Editora Zahar,2010
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 11 ed. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
IANNI, Octávio.
A sociologia e o mundo moderno. 1Ed. RJ, Civilização Brasileira, 2011, 406p.
SANTOS, Mario Ferreira dos.
Filosofia da crise. 1959. 3 ed
[1] Em
uma famosa frase de seus Cadernos argumenta sobre um momento de interregno entre o novo que
nasce e o velho que morre marcada por uma crise. "A
crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda
não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos
aparece".