quinta-feira, 17 de julho de 2014

Sociologia como narrativa crítica sobre o mundo social


A sociologia desmistifica, revela, critica e, por consequência, desnaturaliza relações, processos e estruturas de dominação, expropriação, violência, rompendo com mecanismos que reproduzem misérias e desigualdades, tidas como componentes “naturais” de uma sociedade pseudodemocrática.
            Sim! A Sociologia é geradora de consciências reflexivas, rebeldes e democráticas. É uma arma de combate que substitui e anula os  automatismos dos indivíduos e forja atores com competências para a realização da crítica, julgamentos e estratégias argumentativas.
A sociologia é reconhecida pelo incômodo que causa a “ordem social” e esse incômodo reside precisamente no fato dela questionar o estado de coisas vigentes, de não aceitar como natural e dado o funcionamento  e a dinâmica das coisas, relações e fenômenos. Crenças, dogmas e a rotina auto-evidente são inimigos da sociologia reflexiva, pois teimam em nos conformar ao poder do senso comum e do seu quadro referencial supostamente natural, de certezas inquestionáveis que dotam de lógica e sentido o nosso estar no mundo; nos situa ,organiza e explica nossas condições de vida.
A sociologia, pois, se constrói contra as rotinas que são produtoras e legitimadoras de desigualdades; que conferem poder e riqueza a alguns e incapacidade de ação e pobreza para outros. Na medida em que se contrapõe a essas rotinas a sociologia se converte em um componente fundamental para a transformação social, sobretudo porque coloca a luta pelos direitos e pela cidadania como prática que deve ser exercida cotidianamente diante do poder constituído e dos privilégios que ainda reproduz. Como salienta Bauman e May (2010,p.83) o cerne da Sociologia só faz sentido no momento em que estiver sendo incorporado pelo conjunto da cidadania e não cada vez mais mantido à parte. Um cerne, portanto, de uma sociologia reflexiva e crítica
A sociologia não apenas evidencia que não existem fatalismos como sugere múltiplas formas e interpretações para construção sociológica e política das trajetórias individuais e coletivas, regionais e nacionais. Desta maneira amplia não somente os níveis de percepção da realidade como as margens de liberdades individuais e coletivas, mostrando a responsabilidade histórica dos homens na construção do mundo social e no combate consciente as mazelas e desigualdades que afligem a sociedade. Por isso, talvez seja uma ferramenta fundamental para fornecer os léxicos, as tendências práticas e interpretações apropriadas para viabilizar as mudanças indispensáveis para uma sociedade justa e democrática. Afinal, como diria Octávio Ianni (2011), a sociologia é uma forma de autoconsciência científica da realidade social, realidade que está sempre em movimento, formação e transformação resultante das lutas, impasses e problemas que desafiam os homens, grupos e coletividades.
Isso não significa que a perspectiva sociológica é a única a operar tais realizações, mas talvez por ter nascido em um momento de crise e sobre as crises sempre analisar, terminar por lidar de maneira particularmente privilegiada com as causas manifestas e latentes que originam os problemas sociais, políticos e culturais expresso nas lutas, impasses e problemas acima registrados. Não poderia ser diferente  a sociologia é considerado por alguns  até como ciência da crise, pois sempre esteve enredada com grandes efervescências e irrupções sociais, aliás, o  marco de seu nascimento se inscreve em um mundo de amplas transformações sociais que compreendiam guerras, revoltas, rupturas seculares e novos empreendimentos culturais.
            De forma ambivalente, podemos afirmar que a sociologia, seu avanço, contribuição e significação para sociedade corresponde às suas crises contínuas, aos ataques frequentes às suas bases e pressupostos causados pelas transformações sociais. Crise social e crise da sociologia convivem e se nutrem reciprocamente.
            Pode-se afirmar que esse -  a crise da sociologia - é um indicativo de que ela está em ótima forma. A sua crise corresponde por um lado as características de seu próprio objeto que é sujeito ao mesmo tempo; um sujeito em sociedade, nas suas relações de negação e afirmação, dependência e interdependência, tecidas nos mais variados e distintos níveis de experiência e sociabilidade.
Sua crise (que é seu modo ser, pois possui como característica autoquestionar-se e duvidar sistematicamente de toda e qualquer certeza ) reflete a dinâmica da sociedade; as ações e motivações dos seus indivíduos, expressa os movimentos de tensão e indignação, corresponde aos impulsos e sentimentos coletivos em ebulição. Indica as bases contraditórias e assimétricas sobre a qual se assenta as relações em sociedade.
Sobre esse aspecto, poderíamos afirmar que as crises convertem-se em um “objeto” especialmente atraente para a sociologia, pois permitem a realização de reflexões e diagnósticos que captam uma conjuntura em ebulição, momento propício para explicitação das causas,  razões, motivos e forças que configuram ou delineiam certo status quo.  Nesse sentido, é possível afirmar que há uma diversidade de modalidades ou tipos de crise, com diferentes escalas, e graus variados de impacto; Quanto à modalidade, há crises econômicas, sociais, políticas, ambientais, culturais, identitárias etc; Quanto às escalas, podemos afirmar que há crises em escala individual, familiar, grupal e a societária. Cabe apenas assinalar que em última análise todas essas crises possuem conexões entre si, se condicionam e nutrem reciprocamente, de modo que não há crise que se engendra por si, de forma independente, mas guarda uma relação mais ou menos significativa com outras modalidades, escalas e implicações de outras crises. A crise é sempre relacional, sempre social. Como nos lembra Santos,  a noção de crise deriva de uma velha palavra de origem grega ( crisis ) que significava separação, abismo e também juízo. Lembra-nos que “o existir é um separar-se, uma crisis, um abismo”, pois “tudo quanto existe se separa, afirma abismos”. (SANTOS, 1959,p.12) 

Mas como bem adverte Santos a separação e o abismo é fundamental para crítica, especialmente para crítica sociológica;

Nós não podemos viver sem a crisis, e não podemos viver com ela(...) É a crisis que leva o homem a crítica(..) Por isso quer  vencê-la, vadear o abismo, ultrapassá-lo, que é o devir, o constante transmutar-se das coisas. ( SANTOS, 1959, p.13).

A crise, nesse sentido, seja em suas formulações teóricas ou práticas, possui uma dimensão muito positiva para o desenvolvimento de uma análise sociológica, pois é um indicativo da força ativa e transformadora dos agentes sociais na construção e direcionamento da história. É a emergência da tomada de consciência da crise “que leva o homem à crítica”, revelando a dinâmica histórica do movimento social em contraponto a estática funcional própria do poder instituído e suas instituições que tendem ao fechamento buro e democrático.
 A crítica implica, pois. na mudança de ordenamentos estabelecidos e engessados do ponto de vista institucional.  Além disso, diz respeito à atualização e renovação de instituições sociais  e seus mecanismos de reprodução social, a exemplo das formas de pensar, sentir e agir que orientam indivíduos e coletividades. Serve como ponto de partida de novas obrigações, agendas e lealdades.
Trata-se, enfim, de um sinalizador de novos horizontes e utopias, expressos em novas relações em diferentes escalas entre Estado, economia, política e sociedade. A crise, ou crises como veremos adiante, marca uma período de transição, de amplas mudanças onde, como diria Gramsci[1], o novo tateia seu nascimento e o velho teima em resistir. O devir crísico do mundo é surpreendente e a sociologia tem papel fundamental no sentido de explicar e compreender os dilemas em aberto pelas conjunturas crísicas; prenha de forças e possibilidades.
Por fim, sem celebrar demasiadamente o horizonte crítico da perspectiva sociológica, que apesar de singular não é insubstituível , poderíamos afirmar, ancorados em Bauman (2010) que uma das caracteristicas fundantes da sociologia e do pensamento sociológico é seu “poder de antifixação;

Ele torna flexível aquilo que pode ter sido a fixidez opressiva das relações sociais e, ao fazer isso, abre um mundo de possibilidades. A arte de pensar sociologicamente consiste em ampliar o alcance e a efetividade da liberdade(...) A sociologia pensa de forma relacional para nos situar em redes de relações sociais(...) Nesse sentido, pensar sociologicamente significa entender de um modo um pouco mais completo que nos cerca, tanto em suas esperanças e desejos quanto em suas inquietações e preocupações” ( Bauman e May. Pg.26 )

Eis uma face singular da sociologia, ela diz respeito a desfamiliarização; tonar questionável o evidente e auto-explicativo, de modo a evidenciar que as coisas e estados existentes são construídos social, material e simbolicamente. Três argumentos, a meu ver, sintetizam a expressão sociológica em sua potencialidade crítica:
a)      A sociologia nos indica que os fenômenos sociais que nos rodeiam e dos quais participamos ativa ou passivamente resultam de dinâmicas processuais, cujas teias de relações, ações e intenções, situados em um contexto especifico, nos fornecem o quadro explicativo do qual emergem as tendências e orientações, sentidos e razões que nos situam e nos conformam compreensivelmente neste mundo.
b)      A sociologia diz respeito a politização, visto que nos situa no mundo enquanto atores que constroem socialmente seu destino, através de ações orientadas, intenções veladas e projetos ousados. Construir socialmente nosso destino não significa projetarmos e construirmos uma vida ideal, de modo quase arbitrário e supostamente isolado das coações externas e condicionamentos sociais de todas as espécies. Significa,pois, termos compreensão e consciência de que, apesar dos imperativos sociais que condicionam nossas ações e projetos, nós possuímos uma margem de liberdade e controle para atuarmos nos rumos e tendências que a vida segue, assegurando alternativas de caminhos  mais seguros e com menos instabilidade para consecução de nossos projetos de vida. 
c)      Por fim, e em último lugar, a sociologia não apenas explica que somos partes de uma organização social e que podemos nos guiar consciente e politicamente nesse habitat coletivo, sugere sobretudo, que as formas de viver e conviver são historicamente construídas e que as formas contemporâneas de dominação, hierarquia, exploração, alienação, desigualdades e outras contradições são resultado dessa construção. E como resultado de uma construção social, podem socialmente serem desestruturadas e reconstruídas segundo outros ideais de sociedade, economia e política.

Para narrativa sociológica da realidade, sempre outros mundos são possíveis!


Bibliografia

BAUMAN, Zigmunt & MAY, tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro. Editora Zahar,2010
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 11 ed. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
IANNI, Octávio. A sociologia e o mundo moderno. 1Ed. RJ, Civilização Brasileira, 2011, 406p.

SANTOS, Mario Ferreira dos. Filosofia da crise. 1959. 3 ed


[1] Em uma famosa frase de seus Cadernos argumenta  sobre um momento de interregno  entre o novo que nasce e o velho que morre marcada por uma crise.  "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece".