sexta-feira, 30 de maio de 2014

Bauman: O capitalismo parasitário e o Estado assistencial para os ricos.


O presente texto é um trecho da minha dissertação "NARRATIVAS SOBRE A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL E CRISE DAS REPRESENTAÇÕES: O QUE A CRISE EVIDENCIA ?"

não foi apenas o sistema bancário e a bolsa de valores que sofreram duros e sucessivos golpes – nossa confiança nas estratégias de vida, nos modos de agir, nos padrões de sucesso e no ideal de felicidade que, dia após dia, nos últimos anos, nos disseram que valia a pena seguir também foi abalado e perdeu parte considerável de sua autoridade e poder de atração. O fato é que agora o tempo da orgia acabou. Chegaram os dias (meses, talvez anos) de fazer contas, de calcular, Dias de ressaca e de recobrar a sobriedade”  ZIGMUNT BAUMAN
                                                                                                               

Dentre os livros que tomam como objeto a crise que irrompeu em 2008 nos EUA e atingiu imediatamente a Europa, o de Bauman talvez seja o que reservou menos tempo para uma analise mais acurada da natureza e dimensões da crise, não obstante apresenta em seu ensaio,  Capitalismo Parasitário: e outros temas contemporâneos, ideias e sugestões que corroboram e complementam argumentos e análises desenvolvidos por Harvey (2011) e Santos (2011).
O estilo de apresentação dos textos de Bauman é ensaístico e geralmente associado a uma apreensão fenomenológica da vida social expressa em uma abordagem que privilegia o cotidiano, as percepções das pessoas e até seus sentimentos, mas nem por isso deixa de tecer relações mais densas e sofisticadas conectando ações individuais às dinâmicas mais gerais e estruturantes da vida social.
Dito isso vamos nos ater à sua breve análise.

 CAPITALISMO À CRÉDITO

            A primeira afirmação de Bauman (p.7) relativamente a crise irrompida em 2008 é a de que o ‘tsunami financeiro’ evidenciou a  milhões de indivíduos que o capitalismo se destaca por criar problemas, e não por solucioná-los.
. Lembra que “a aventura das ‘hipotecas subprime’, vendidas a opinião pública como forma de solucionar o problema dos sem-teto, esta praga que, como todos sabem, o capitalismo produz sistematicamente, acabou, ao contrário, multiplicando o número de pessoas sem casa, com a epidemia de retomada de imóveis. Se ele tenta resolver problemas, não pode fazê-lo sem cair na incoerência em relação a seus próprios pressupostos fundamentais” (Bauman, 2010:8)
Recorre a Rosa Luxemburgo que em “seu estudo sobre a ‘acumulação capitalista’, no qual sustentava que esse sistema não pode sobreviver sem as economias ‘não capitalistas’.  Esclarece que o capitalismo só  é “capaz de avançar seguindo os próprios princípios enquanto existirem ‘terras virgens’ abertas à expansão e à exploração” privando-as  de sua “virgindade pré-capitalista, exaurindo assim as fontes de sua própria alimentação”. Assevera, “o capitalismo é um sistema parasitário”, pois como todos os parasitas ele pode prosperar durante algum período explorando algum organismo que lhe forneça alimento. Contudo, adverte, que o parasita não pode “fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou  mesmo de sua sobrevivência” (Bauman, 2010:8-9)
É importante ressaltar aqui que os novos hospedeiros a qual Bauman se refere são os cidadãos que viviam à credito e consumindo por impulso, a exemplo do povo americano que antes da crise era responsável por 70% das atividades econômicas do pais realizadas basicamente pelo consumo. Além desses hospedeiros habituais há ainda aqueles que sem condições de conseguir sua habitação foram ‘contemplados’ pelas  operações sub-prime dos bancos que ofereciam crédito a pessoas sem condições de pagamento, mas com altas taxas de juros.Os milhares de despejos que já vinham acontecendo nos Eua (Harvey, 2011) já prenunciavam um mal maior.
Bauman  (p.9-10) escreve que Rosa Luxemburgo a mais de cem anos atrás não poderia prever que os “territórios exóticos não eram os únicos ‘hospedeiros’ potenciais, dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade”, sempre que as espécies anteriormente exploradas se tornam escassas ou se extinguem.  Prossegue argumentando que  um dos principais  hospedeiros, como já citado anteriormente, se expressa através das “hipotecas subprime”,

que estão na origem da atual recessão: o expediente de fôlego curto, deliberadamente míope, de transformar em devedores indivíduos desprovidos dos requisitos necessários à concessão de um empréstimo”(...) é também no oportunismo e na rapidez, dignos de um vírus, que se adapta às idiossincrasias de seus novos pastos

Aponta que “a atual contração do crédito não é um sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustão de mais um pasto” que a busca de novas paisagens terá início imediatamente, alimentada, como no passado, pelo Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos (usando os impostos, em lugar do poder de sedução do mercado, agora abalado e temporariamente fora de operação) (Bauman, 2010: 10)
Segundo o autor (p.11-12) o anúncio de nova ‘descoberta’, de uma ilha ainda não assinalada nos mapas, atrai multidões de investidores, destacando que a introdução dos cartões de crédito foi um sinal do que viria a seguir, pois foram lançados no mercado cerca de 30 anos atrás, com o slogan exaustivo e extremamente sedutor de ‘Não adie a realização do seu desejo’. Argumenta que se no passado era preciso adiar a satisfação, lembrando Weber de que esse adiamento (privações de alegrias, gasto com prudência e frugalidade, investindo em poupança) foi um dos princípios que ajudaram a forjar o capitalismo, atualmente “Graças a Deus e à Benevolência dos bancos, isso já acabou! Com um cartão de crédito, é possível inverter a ordem dos fatores: desfrute agora e pague depois!”  Se antes havia necessidade de ganhar  para  atender as satisfações agora trata-se de desejar e ‘passar o cartão.
Bauman sugere que essa atitude “desfrute agora, pague depois”, cedo ou tarde se converterá em “agora”, isto é, o crédito fácil dos cartões de crédito se tornam dividas que terão de ser pagas, por vezes, contraíndo empréstimos. É ai que a dívida contraída é “transformada numa fonte permanente de lucro”, e assim os “credores modernos e benevolentes resolveram e conseguiram transformar (o débito) na principal fonte de lucros constantes”. Para esses credores, acrescenta o autor, o “devedor ideal é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas”(Bauman, 2010:13-15)
Bauman (p18) resume que “a atual ‘contração do crédito’ não é resultado do insucesso dos bancos. Ao contrário, é o fruto, plenamente previsível, embora não previsto, de seu extraordinário sucesso”.

O ESTADO ASSISTENCIAL PARA OS RICOS

Bauman  enfatiza que, como em todas as mutações pretéritas do capitalismo, o Estado também participou efetivamente no sentido da “criação de novos pastos a explorar” salientando que foi durante o governo Clinton que as hipotecas subprime foram introduzidas, “a fim de oferecer crédito, para compra da casa própria, a pessoas desprovidas dos meios de pagar a dívida assumida, e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores” (Bauman, 2010:19)
E assim a sociedade dos consumidores converte-se igualmente na sociedade dos devedores, que na atual fase de capitalismo financeiro, apresenta-se como principal componente de lucratividade e acumulação do capital.
Como exemplo dessa situação Bauman (p.20) registra que nos EUA o endividamento das famílias medias americanas cresceu 22% nos últimos oito anos e a soma de aquisições com cartão de crédito não ressarcidas cresceu 15%. Seus estudantes foram obrigados a “viver à crédito” para permanecerem estudando. Na Grã-Bretanha a situação não é nada alentadora, segundo o autor, em 2008 a inadimplência dos consumidores superou o PIB do país, isto é,

as famílias britânicas tem dívidas num valor superior a tudo o que suas fábricas, fazendas e escritórios produzem(...)  O planeta dos bancos está esgotando as terras virgens e já se apropriou implacavelmente de vastas extensões de terras endemicamente estéreis  (BAUMAN, 2010:20)

. Segundo Bauman (p.21-22)  nenhum dos pressupostos ou estratégias falenciais responsáveis pela crise atual foram postos em discussão pelos poderes constituídos, pois “na cabeça dos que detêm o poder, mais crédito (ou seja, a produção em série de indivíduos endividados) ainda é a chave da prosperidade econômica.” Afirmam que são apenas ‘ativos problemáticos’ e não ‘instituições problemáticas’ que causaram os problemas, precisa-se apenas de um ‘remédio’, e não “uma corajosa intervenção cirúrgica”
O autor destaca (p.23) que recapitalizar as empresas emprestadoras e reabilitar seus devedores para o crédito,  de modo que o negócio de emprestar e pedir emprestado possa voltar à ‘normalidade’, eis a opção política atual. Prossegue informando que,

O Estado assistencial para os ricos voltou ao salão (..)O Estado voltou a exibir e flexionar sua musculatura como não fazia há tempo, pelo bem da continuidade do jogo que tornou sua flexibilização difícil e até – horror! – Insuportável; um jogo que, curiosamente, não tolera Estados musculosos, mas ao mesmo tempo não pode sobreviver sem eles

Anota  que na ocasião da crise o que ficou “alegremente (e loucamente) esquecido nessa ocasião é que a natureza do sofrimento humano é determinada pelo modo de vida dos homens.” , que  as raízes da dor da qual muitos passam, assim como as raízes de todos os males sociais, estão profundamente vinculadas no como nos ensinam a viver: “em nosso hábito, cultivado com cuidado e agora já bastante arraigado, de correr para os empréstimos cada vez que temos um problema a resolver ou uma dificuldade a superar. Como poucas drogas, viver a crédito cria dependências” (BAUMAN, 2010: p.24)
O autor explana (p.25) que chegar as “ raízes do problema que agora saiu do compartimento top secret  para o centro da atenção pública não é uma solução instantânea” , mas precisamente “ a única  que tem alguma possibilidade de se mostrar adequada à enormidade do problema e de sobreviver aos intensos – mas comparativamente breves – tormentos da desintoxicação”. Afirma que por mais imponentes que sejam as medidas que os governantes já tomaram, pretendem tomar ou dizem que querem tomar, todas elas buscam ‘recapitalizar’ os bancos e deixa-los novamente em condições de desenvolver suas ‘atividade normais’: em outras palavras, a atividade que é a principal responsável pela crise.
Assevera (P.26) que  “ ainda não começamos a pensar seriamente sobre a sustentabilidade dessa nossa sociedade alimentado pelo consumo e pelo crédito.”  O ‘retorno a normalidade’ prenuncia, pois, um retorno aos métodos equivocados e potencialmente perigosos. “ São intenções que preocupam,  pois sinalizam que nem as pessoas que dirigem as instituições financeiras nem os governos chegaram à raiz do problema em seus diagnósticos”
Destaca (P.27) que,

essa espécie de Estado assistencial para os ricos (ou mais exatamente, a política de mobilizar, por intermédio do Estado, os recursos públicos que as empresas capitalistas não conseguem convencer o público a lhes entregar diretamente) não é novidade: apenas o alcance e a publicidade que o acompanham assumiram proporções capazes de causar escândalo.

Bauman (p.28)recorda Habermas afirmando que a substancia do capitalismo “é o encontro entre capital e trabalho” e que a principal  “tarefa  (e, portanto, legitimação) do Estado capitalista é garantir que ambas as condições se cumpram”, isto é, que o capital compre o trabalho, garantindo ao primeiro subvenções e concessões para que haja a comercialização com o segundo.  Ocorre que, segundo o autor, a sociedade contemporânea viveu uma transição da sociedade ‘sólida’ de produtores  para a sociedade ‘liquida’ de consumidores, resultando que acumulação capitalista migrou da indústria para o mercado de consumo.
Essa transição resultou que,

Para manter vivo o capitalismo, não era mais necessário ‘remercadorizar’o capital e o trabalho, viabilizando assim a transação de compra e venda deste último: bastavam subvenções estatais para permitir que o capital vendesse mercadorias e os consumidores as comprassem. O crédito era o dispositivo mágico para desempenhar esta dupla tarefa. E agora podemos dizer que, na fase líquida da modernidade, o Estado é ‘capitalista’ quando garante a disponibilidade continua de crédito e a habilitação continua dos consumidores para obtê-los. (BAUMAN, 2010:29)

Ilustra (p.30) que  quando os  elefantes brigam, quem paga o pato é a grama, pois antes de mais nada é preciso sublinhar que os dois elefantes, “ o Estado e o mercado, podem lutar entre si ocasionalmente, mas a relação normal e comum entre eles, num sistema capitalista, tem sido de simbiose.”
A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção.  Em geral as políticas do Estado capitalista. ‘ditatorial’ ou ‘democrático, são construídas e conduzidas  no interesse  e não contra o interesse  dos mercados; seu efeito principal (e intencional) embora não abertamente declarado) é avalizar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado. (BAUMAN, 2010:32)
Conclui afirmando (p.32) que,

Se o Estado assistencial hoje vê  seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou é desmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaram ou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração de consumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários para responder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro – não dos tipos de serviços oferecidos  pelo Estado assistencial – para se tornarem úteis segundo a concepção capitalista de “utilidade”

Depreende-se  desses últimos  argumentos do autor, que  a vertiginosa onda de privatizações que atingiram o mundo nas últimas décadas, traduze-se em  diminuição ou desmantelamento deliberado dos serviços públicos simultâneo à  ampliação dos serviços privados para  atender a condição de consumidores dos antigos cidadãos. Se antes havia serviços públicos para cidadãos agora há serviços privados para consumidores.
Exposta essa breve análise do autor, conclui-se que as raízes da crise estão vinculadas ao próprio desenvolvimento do capitalismo; ao modo como cria modos de vida e inovações tecnológicas que permitem descobrir `novos` pastos de acumulação sempre que limites se apresentam na sua frente. Bauman resume que o modo de vida que propiciou a crise atual é a vida a crédito para o  consumo descartável, e as inovações que o capitalismo realizou para atender esse modo de vida foram os cartões de crédito, com crédito fácil, eletronicamente fornecidos pelas instituições financeiras.
Embora nesse livro o autor não apresente medidas ou indicações políticas que poderiam ser resolver ou atenuar seja a crise econômica ou seus impactos sociais, em livro mais recente Danos colaterais: desigualdades sociais numa era Global (2013), apresenta alguns indícios de mecanismos que poderiam fazer face aos “danos colaterais” da crise que atinge especialmente a Europa.
De modo sucinto Bauman argumenta nesse livro que existe e se potencializa no mundo atual repleto de crises uma correspondência entre “danos colaterais” e seu impacto nos “dejetos da ordem”, no “refugo da modernização”. Cada vez mais os efeitos explosivos e indiretos da globalização afetariam as classes mais baixas, o polo pobre da reprodução e criação das desigualdades.
Afirma que num passado recente os “Estados sociais”, responsáveis pelos “30 gloriosos” na Europa, eram fundamentais para atenuar efeitos perversos distribuídos desigualmente na sociedade. Não obstante, após o divórcio entre poder e política - acarretado pelas forças cegas e sem condução política da globalização – todas as instituições politicas no âmbito das soberania territoriais estariam fadados ao fracasso diante dos impasses e problemas gerado globalmente, que é precisamente o caso da crise que atualmente afeta o conjunto da Europa. Os Estado-Nacionais diante da crise, utilizando os argumentos de Bauman, seriam no máximo “delegados de policia locais no estilo ‘lei e ordem’, na medida em que apenas cumprem rigorosamente as diretrizes impostas pela Troika,  e por instâncias financeiras globais, o tal do ‘mercado’.
Diante de um poder livre da política e “de uma política destituída de poder”, onde o poder é global e a política permanece local, Bauman sugere a criação de um arcabouço institucional supranacional a partir de instrumentos e ações qualitativamente superiores aos nacionais,  como num plano mais elevado dos anseios e desejos de uma solidariedade humana. Nesse sentido, sugere (p.36) que a modernidade levou a integração humana até o nível das nações, especialmente através do “Estado social”, mas que agora, essa integração desse se dar no nível da humanidade, incluindo toda população do planeta. Trata-se agora, de criar um equivalente global,  do “Estado social”.
Segundo Bauman (p37),

Em algum momento uma ressurgência do cerne essencial da ‘utopia ativa’ socialista – o princípio da responsabilidade comum e do seguro coletivo contra a miséria e o infortúnio – será indispensável, embora desta vez em escala global, tendo como objeto a humanidade como um todo

Bauman sugere que “a pobreza, a desigualdade e, de modo mais geral, os desastrosos efeitos e “danos colaterais” do laissez-faire global”,  - e aqui podemos naturalmente incluir os efeitos “colaterais” da crise e sua própria resolução – não podem, enfatiza,

ser enfrentados de maneira efetiva nem isolado do resto do planeta, num canto do globo(...) Não há uma forma decente pela qual um ou vários Estados territoriais possam ‘optar por se excluir’ da interdependência global da humanidade. O “Estado social’ não é mais viável; só um ‘planeta social’ pode assumir as funções que os Estados sociais, com resultados ambíguos, tentaram desempenhar.(Bauman,2013:37-38)


Por fim, Bauman (p.38) suspeita que os prováveis veículos para nos conduzir a esse ‘planeta social’ não “sejam estados territorialmente soberanos”, mas sim “organizações e associações não governamentais cosmopolitas”, aquelas que segundo o autor, “atingem diretamente as pessoas necessitadas por sobre as cabeças dos governos locais ‘soberanos’ e sem interferência deles”.

Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2010
__________________. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Boff: A tese de base que sustenta é: a desigualdade não é acidental, mas o traço característico do capitalismo.

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Para teólogo, “O Capital no Século XXI” acerta quando diz que “a desigualdade não é acidental, mas o traço característico do sistema”


Por Leonardo Boff, no Brasil de Fato


Está causando furor entre os leitores de assuntos econômicos, economistas e principalmente pânico entre os muito ricos um livro de 700 páginas escrito em 2013 e publicado em muitos países em 2014. Tranasformou-se num verdadeiro best-seller. Trata-se de uma obra de investigação, cobrindo 250 anos, de um dos mais jovens (43 anos) e brilhantes economistas franceses, Thomas Piketty. O livro se intitula O capital no século XXI(Seuil, Paris 2013). Aborda fundamentalmente a relação de desigualdade socialproduzida por heranças, rendas e principalmente pelo processo de acumulação capitalista, tendo como material de análise particularmente a Europa e os EUA.


A tese de base que sustenta é: a desigualdade não é acidental, mas o traço característico do capitalismo. Se a desigualdade persisitir e aumentar, a ordem democrática estará fortemente ameaçada. Desde 1960, o comparecimento dos eleitores nos EUA diminuiu de 64% (1960) para pouco mais de 50% (1996), embora tenha aumentado ultimamente. Tal fato deixa perceceber que é uma democracia mais formal que real.


Esta tese sempre sustentada pelos melhores analistas sociais e repetida muitas vezes pelo autor destas linhas, se confirma: democracia e capitalismo não convivem. E se ela se instaura dentro da ordem capitalista, assume formas distorcidas e até traços de farça. Onde ela entra, estabelece imediatamente relações de desigualdade que, no dialeto da ética, significa relações de exploração e de injustiça. A democracia tem por pressuposto básico a igualdade de direitos dos cidadãos e o combate aos privilégios. Quando a desigualdade é ferida, abre-se espaço para o conflito de classes, a criação de elites privilegiadas, a subordinação de grupos, a corrupção, fenômenos visíveis em nossas democracias de baixíssima intensidade.


Piketty vê nos EUA e na Grã-Bretanha, onde o capitalismo é triunfante, os países mais desiguais, o que é atestado também por um dos maiores especialistas em desiguldade Richard Wilkinson. Nos EUA, executivos ganham 331 vezes mais que um trabalhador médio. Eric Hobsbown, numa de suas últimas intervenções antes de sua morte, diz claramente que a economia política ocidental do neoliberalismo “subordinou propositalmenet o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB, o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inequalitário”.


Em termos globais, citemos o corajoso documento da Oxfam intermón, enviado aos opulentos empresários e banqueiros reunidos em Davos nos janeiro deste ano como conclusão de seu “Relatório Governar para as Elites, Sequestro democrático e Desigualdade econômica”: 85 ricos têm dinheiro igual a 3,57 bihões de pobres do mundo.


O discurso ideológico aventado por esses plutocratas é que tal riqueza é fruto de ativos, de heranças e da meritocracia; as fortunas são conquistas merecidas, como recompensa pelos bons serviços prestados. Ofendem-se quando são apontados como o 1% de ricos contra os 99% dos demais cidadãos, pois se imaginam os grandes geradores de emprego.


Os prêmios Nobel, J. Stiglitz e P. Krugman têm mostrado que o dinheiro que receberam do Governo para salvarem seus bancos e empresas mal foram empregados na geração de empregos. Entraram logo na ciranda financeira mundial que rende sempre muito mais sem precisar trabalhar. E ainda há 21 trilhões de dólares nos paraísos fiscais de 91 mil pessoas.


Como é possível estabelecer relações mínimas de equidade, de participação, de cooperação e de real democracia quando se revelam estas excrecências humanas que se fazem surdas aos gritos que sobem da Terra e cegas sobre as chagas de milhões de co-semelhantes?


Voltemos à situação da desigualdade no Brasil. Orienta-nos o nosso melhor especialista na área, Márcio Pochmann (veja também Atlas da exclusão social – os ricos no Brasil, Cortez, 2004): 20 mil famílias vivem da aplicação de suas riquezas no circuito da financeirização, portanto, ganham através da especulação. Continua Poschmann: os 10% mais ricos da população impõem, historicamente, a ditadura da concentração, pois chegam a responder por quase 75% de toda riqueza nacional. Enquanto os 90% mais pobres ficam com apenas 25%”(Le Monde Diplomatique, outubro 2007).


Segundo dados de organismos econômicos da ONU de 2005, o Brasil era o oitavo país mais desigual do mundo. Mas graças às políticas sociais dos últimos dois governos, diga-se honrosamente, o índice de Geni (que mede as desigualdades) passou de 0,58 para 0,52. Em outras palavras, a desigualdade que continua enorme, caiu 17%.


Piketty não vê caminho mais curto para diminuir as desigualdades do que a severa intervenção do Estado e da taxação progressiva da riqueza, até 80%, o que apavora os super-ricos. Sábias são as palavras de Eric Hobsbown: “O objetivo da economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população; o crescimento econômico não é um fim em si mesmo, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas”.


E como um gran finale a frase de Robert F. Kennedy: ”o PIB inclui tudo; exceto o que faz a vida valer a pena.”