sábado, 15 de junho de 2013

O sistema do transporte “público” e o sentido do Movimento Passe Livre.


               Comecemos por caracterizar o que é o nosso atual sistema de transporte privado caracterizado como "público”. É:

 - Um dos principais instrumento da relação promíscua entre Estado e Mercado.
- Um dos principais componentes da apropriação da renda dos trabalhadores.
- Um brutal mecanismo de degradação da vida cotidiana animalizada
- Um das bases de uma urbanidade insustentável, economicamente ineficiente e ecologicamente desprezível.
- Um dos principais bloqueios para o direito de ir e vir.
- Um atentado contra a liberdade humana!

Um dos principais componentes da apropriação da renda dos trabalhadores e da degradação da vida.
 Alem das despesas com  habitação, saúde e alimentação que são imensas para o trabalhador brasileiro, o transporte tem se consolidado nos últimos anos  como o terceiro maior gasto da renda mensal familiar dos brasileiros. Segundo o IBGE ( dados de 2009 ) a gasto com o transporte já corresponde há 16% do gasto mensal  das famílias, o equivalente aos gastos com alimentação. Não preciso mais prolongar-me a esse respeito, uma grande parte da população sente esse fato no bolso e, de modo “especial” na pele, quando diariamente seu tempo e vida ( as vezes literalmente, em assaltos e brigas afins ) se esvaem em uma experiência nada agradável, por vezes, degradante.

Um das bases de uma urbanidade insustentável, economicamente ineficiente e ecologicamente desprezível.

                Em um cenário onde o governo  reduz a tributação sobre o transporte  e estimula a compra de carro, soma-se ao  ponto anterior - gastos com transporte e a experiência de seu uso – a (ir)racionalidade de se investir pesadamente na opção rodoviária no Brasil no contexto urbano, interurbano e inter-regional. Trata-se não apenas da opção mais cara a longo prazo, mas a que traz mais problemas relativos ao meio ambiente e a qualidade de vida nas cidades, gerando problemas que serão igualmente pagos com os impostos da população. A poluição do ar e as doenças respiratórias daí oriundas conjugadas com o estresse dos congestionamentos são apenas um exemplo dessa dimensão.
 Nosso sistema de transporte “público”  e o meio urbano caótico que temos hoje se faz coerente com um modelo de “desenvolvimento” que prioriza, de um lado, o “crescimento econômico” de forma geral,  onde a produção e venda de veículos conta como estatística imprescindível para o PIB e, e de outro, beneficia montadoras, concessionárias e construtoras que reiteradamente “tapam buracos” dos problemas de mobilidade urbana no brasil e, alem disso, participam ativamente no processo eleitoral. Sim, estamos falando de um modelo desenvolvimento coerente com a lógica do mercado e interesses políticos e incoerente com os pressupostos para realização do desenvolvimento humano e da sustentabilidade ambiental.

Um atentado contra a liberdade humana e um dos principais bloqueios para o direito de ir e vir.

O dinheiro é um dos principais componentes de liberdade e privação da liberdade no capitalismo. Considerando que temos um salário mínimo muito aquém para uma vida digna gasta-se, como já vimos, um dinheiro significativo com o transporte diário. Nesse sentido,  nos limitamos de comprar ( livros e comida mais saudável por exemplo ) para conseguirmos nossa locação diária. Imaginem os desempregados, especialmente aqueles que moram longe centro urbanos onde se ofertam a grande maioria do empregos,estes  tem limitações não apenas de deslocamento, mas  limitações de oportunidade, reconhecimento e dignidade. Limitações de liberdade que se convertem em determinações para “bandidagem”; se o Estado não oferece as oportunidades para este comer, se deslocar e ser reconhecido como cidadão, existem outros meios para este indivíduo se sentir oportunizado, pertencido, grato. Limitar o direito de ir e vir com um transporte privado caracterizado como “público” é um atentado não apenas a letra morta da constituição mas a vivacidade da liberdade humana.

 Essas observações sugerem diretamente e indiretamente o fracasso de um modelo politico capturado pelo Mercado. Mercado e Estado aparecem como faces de uma mesma moeda. Não é um fenômeno local, insere-se na própria dinâmica do capitalismo globalizado onde ampliam-se a distância entre sociedade e Estado a partir da subordinação deste aos imperativos do economia globalizada que obriga o Estado a uma dependência de fluxos de investimento que lhes rendem alguns empregos e impostos.  As agências de classificação hoje, substituindo o FMI na vigilância da America latina, representam em parte as determinações de ajustamento nacional as ambições do Mercado. Em outras palavras, a política e planejamento nacional ( como a política econômica, fiscal, tributária etc ) não são independentes. Não há nacionalismo que resista se amparado somente no Estado nacional.

                Mas a relação entre Estado e Mercado no capitalismo globalizado não é recente, estes nunca foram separados, instâncias independentes. Em O enigma do capital  Harvey evidencia a articulação promiscua entre Estado e Mercado financeiro durante a história do capitalismo. Harvey caracteriza a relação de nexo Estado-Finanças como o coração do sistema de crédito moderno, base de uma estrutura de governança na qual a  a “gestão do Estado para a criação do capital e dos fluxos monetários torna-se parte integrante, e não separável da circulação do capital”.
Vale registrar que em momentos de crise essa relação se explícita, geralmente em benefício do Mercado e detrimento do trabalho. O exemplo  dos EUA  - para não nos alongarmos na situação européia - é emblemático a esse respeito, despejando bilhões em salvamento de bancos em 2008 de maneira rápida e sem consulta popular
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Nesse cenário o Estado como o entendemos  se encontra incapacitado, para alem da boa vontade política, de realizar uma democracia nos limites do estado nacional, seja por determinações e limites externos ou por injunções internas relativas a organização política tradicional com sistema eleitoral, partidos e sindicatos. É nessa dialética entre sociedade e Estado em âmbito nacional e Estado e Mercado globalizado que se encontram os grandes desafios nacionais atualmente. Como se tem observado não apenas no Brasil, mas em boa parte do mundo, a exemplo dos Eua e Europa, a resposta estatal em termos políticos tem sido orientada direta ou indiretamente  para o desmantelamento do welfare-state, para socialização dos prejuízos a partir do endividamento do Estado para e privatização de lucros.

        A irrupção de movimentos e levantes sociais tem sido a resposta possível da sociedade nacional ( com fontes de inspiração, aprendizagem e colaboração mundial ) organizada ou não, para fazer a face a degeneração da democracia. O movimento “surgido”por causa de 20 centavos foram apenas o ponto de inflexão de uma reflexão e experiência que já estava em maturação: corresponde a canalização de forças e lutas antes difusas e direcionados para  lugares e fins improdutivos ( concessões de curto prazo ) ; expressa um momento de conversão da “massa” e do “povo” em multidão, em força ativa e criativa de singularidades que lutam pela mudança do status quo, pela reinvenção de suas vidas degradas por um sistema de transporte privado . Eis a força da democracia em movimento, restituindo valor da luta política , reinventando-a na prática. Democracia e liberdade andam juntas, quando a primeira se degenera as condições de possibilidades da segunda são comprometidas. A luta pelo passé livre é, portanto, uma luta legítima e democrática pela ampliação das liberdades!

sexta-feira, 14 de junho de 2013

As expressões do Movimento Passe Livre: Vandalismo ou exercício democrático?


A polêmica é sempre oportunidade para dialéticas de esclarecimento, para alargamento de percepções e consciências, para realização do debate democrático.


Vejo pulular na rede tanto textos e vídeos contrários ao MPL ( Movimento Passe Livre ) quanto aqueles  que o apoiam, voltados a evidenciar a violência estatal através de seus aparelhos repressivos. O movimento aparece ora representando todos, ora representando ninguém. A massa ou o povo, segundo os textos e vídeos disponíveis, adquire contornos, dedos e corpo da classe média, da mídia dominante, dos jovens delinquentes, burguesia fascista, partidos da esquerda à direita . Essa pluralidade de referências ao movimento e suas interpretações refletem a posição social, política e existencial daqueles que “informam” suas versões, opiniões, críticas e verdades. O fato é que o movimento não pode ser reduzido a nenhumas dessas interpretações, na verdade, a maioria são, de um lado, desqualificações do movimento e, de outro, petistas, esquerdistas e tucanos se acusando reciprocamente na busca dos responsáveis pela situação.
            Alguns afirmam que não teriam trabalhadores no movimento, só  jovens da classe média,”playbois”, “rebeldes sem causa” que nem sentiriam “o peso das passagens”, mas isso seria motivo para desqualificar a luta e suas atitudes?  As pessoas só se engajariam em causas que dizem respeito a sua classe?
Há aqueles que insinuam que o movimento foi muito espontâneo, sem bandeiras, lideranças, a partidário etc.Mas há igualmente aqueles que afirmam que o movimento seria programático e não teria nada de espontaneidade; partidos políticos esquerdistas e tucano estariam alí  infiltrados, direcionando ações,  manipulando as “massas” para atacar o governo petista. Seria uma oportunidade ímpar para tal intento. Seriam simplesmente uma massa de manobra usada pela direita e pela mídia hegemônica? Estariam apenas depredando patrimônio público e deslocando policiais para atividades improdutivas? São perguntas que expressam no mínimo uma pobreza analítica sobre o movimento, não visualizando nele capacidade inventive, reconstrutiva, possibilidades de realização democrática, controle e pressão social sobre as instituições que governam este país.
Não podemos negar os diferentes discursos, críticas e desqualificações revelam facetas do tema em questão, qual seja; o transporte público enquanto “direito a cidade” e a legitimidade ou não dos movimentos que almejam esse direito.
É importante reconhecer que  existe tudo isso junto e muito mais, são muitas intenções, interesses, desejos, singularidades em jogo, mistura de ações programáticas com espontaneísmos, oportunidades para se sentir útil etc... não podemos realizar diagnósticos simplistas e unilaterais do tipo “isso é uma ação programática da direita que manipula a massa”, “trata-se de ação da extrema esquerda com a direita para desestabilizar o pt”, “ isso é um ato irracional de vândalos”, isso é…..x, y,z. Pelo que li a coisa é muito mais complexa do que muitos imaginam, o movimento envolveu para o bem ou para mau classe média, classe trabalhadora ou “nova” classe média,  movimentos ecológicos, movimentos de habitação, movimentos de “direito a cidade” e outros.
O movimento é necessário,  componente indispensável de mudança social, econômica e política. Mas nunca esqueçamos que ele nunca é homogêneo, mas sempre plural, contraditório, sujeito a muitas determinações e, igualmente, a desdobramentos insuspeitados.
Tais situações, penso, permitem insurreição de consciências, momento de politização sobre os problemas nacionais. Não, sem essa de que eles são apenas  “massa”, objeto de manobra, é também multidão de singularidades que se reinventam no calor das lutas, que reorientam energias e ideias para construção do comum! ( Passe livre!) O movimento é também movimento de subjetividades; não se resume a contestar alguns centavos de aumento mas representa um sintoma da insatisfação geracional com o modelo de política e de desenvolvimento realizado pelo Brasil ( e pelo Mundo ) nas últimas décadas neoliberais. Sim, está em causa os sentidos e ambivalências do Lulismo, depois de alimentada a multidão quer mais! Em boa parte surgida no âmbito do governo do PT, a “nova classe média” que ao contrário do que alguns analistas pensam (  classe despolitizada e consumista ) é também classe subjetivamente crítica e criativa; que uma hora cessa de aguentar porretes e exploração e afirma-se, como diria Bruno Cava, como força viva e produtiva de outro mundo.
Por fim, ao realizar diversas leituras pela rede percebi como nostalgias e utopias também se apresentam igualmente no horizonte de lutas, práticas ou ideológicas. A nostalgia se apresenta com  a referências aos movimentos pretéritos, suas conquistas e uma pretensa autenticidade quando comparado aos atuais. A utopia aparece seja como fonte de inspiração para mudança ( Pró-MPL ) ou ainda como fonte de resignação para manutenção do “status quo” ( Contra-MPL ) supostamente desqualificando a idéia de Passe Livre como uma realização impossível, utópica.  Ora, ser utópico atualmente é a maneira mais realista de existir em um mundo com crises múltiplas que atentam contra a justiça e dignidade humana.