Comecemos por
caracterizar o que é o nosso atual sistema de transporte privado caracterizado
como "público”. É:
- Um dos
principais instrumento da relação promíscua entre Estado e Mercado.
- Um dos principais
componentes da apropriação da renda dos trabalhadores.
- Um brutal mecanismo
de degradação da vida cotidiana animalizada
- Um das bases de uma
urbanidade insustentável, economicamente ineficiente e ecologicamente
desprezível.
- Um dos principais
bloqueios para o direito de ir e vir.
- Um atentado contra a
liberdade humana!
Um dos principais
componentes da apropriação da renda dos trabalhadores e da degradação da vida.
Alem
das despesas com habitação, saúde e alimentação que são imensas para o
trabalhador brasileiro, o transporte tem se consolidado nos últimos anos
como o terceiro maior gasto da renda mensal familiar dos brasileiros. Segundo o
IBGE ( dados de 2009 ) a gasto com o transporte já corresponde há 16% do gasto
mensal das famílias, o equivalente aos gastos com alimentação. Não
preciso mais prolongar-me a esse respeito, uma grande parte da população sente
esse fato no bolso e, de modo “especial” na pele, quando diariamente seu tempo
e vida ( as vezes literalmente, em assaltos e brigas afins ) se esvaem em uma
experiência nada agradável, por vezes, degradante.
Um das bases de uma
urbanidade insustentável, economicamente ineficiente e ecologicamente
desprezível.
Em um cenário onde o governo reduz a tributação sobre o transporte
e estimula a compra de carro, soma-se ao ponto anterior - gastos com
transporte e a experiência de seu uso – a (ir)racionalidade de se investir
pesadamente na opção rodoviária no Brasil no contexto urbano, interurbano e
inter-regional. Trata-se não apenas da opção mais cara a longo prazo, mas a que
traz mais problemas relativos ao meio ambiente e a qualidade de vida nas
cidades, gerando problemas que serão igualmente pagos com os impostos da
população. A poluição do ar e as doenças respiratórias daí oriundas conjugadas
com o estresse dos congestionamentos são apenas um exemplo dessa dimensão.
Nosso
sistema de transporte “público” e o meio urbano caótico que temos hoje se
faz coerente com um modelo de “desenvolvimento” que prioriza, de um lado, o
“crescimento econômico” de forma geral, onde a produção e venda de
veículos conta como estatística imprescindível para o PIB e, e de outro,
beneficia montadoras, concessionárias e construtoras que reiteradamente “tapam
buracos” dos problemas de mobilidade urbana no brasil e, alem disso, participam
ativamente no processo eleitoral. Sim, estamos falando de um modelo
desenvolvimento coerente com a lógica do mercado e interesses políticos e
incoerente com os pressupostos para realização do desenvolvimento humano e da
sustentabilidade ambiental.
Um atentado contra a
liberdade humana e um dos principais bloqueios para o direito de ir e vir.
O dinheiro
é um dos principais componentes de liberdade e privação da liberdade no
capitalismo. Considerando que temos um salário mínimo muito aquém para uma vida
digna gasta-se, como já vimos, um dinheiro significativo com o transporte
diário. Nesse sentido, nos limitamos de comprar ( livros e comida mais
saudável por exemplo ) para conseguirmos nossa locação diária. Imaginem os
desempregados, especialmente aqueles que moram longe centro urbanos onde se
ofertam a grande maioria do empregos,estes tem limitações não apenas de
deslocamento, mas limitações de oportunidade, reconhecimento e dignidade.
Limitações de liberdade que se convertem em determinações para “bandidagem”; se
o Estado não oferece as oportunidades para este comer, se deslocar e ser reconhecido
como cidadão, existem outros meios para este indivíduo se sentir oportunizado,
pertencido, grato. Limitar o direito de ir e vir com um transporte privado
caracterizado como “público” é um atentado não apenas a letra morta da
constituição mas a vivacidade da liberdade humana.
Essas
observações sugerem diretamente e indiretamente o fracasso de um modelo
politico capturado pelo Mercado. Mercado e Estado aparecem como faces de uma
mesma moeda. Não é um fenômeno local, insere-se na própria dinâmica do
capitalismo globalizado onde ampliam-se a distância entre sociedade e Estado a
partir da subordinação deste aos imperativos do economia globalizada que obriga
o Estado a uma dependência de fluxos de investimento que lhes rendem alguns
empregos e impostos. As agências de classificação hoje, substituindo o
FMI na vigilância da America latina, representam em parte as determinações de
ajustamento nacional as ambições do Mercado. Em outras palavras, a política e
planejamento nacional ( como a política econômica, fiscal, tributária etc ) não
são independentes. Não há nacionalismo que resista se amparado somente no
Estado nacional.
Mas a relação entre Estado e Mercado no capitalismo globalizado não é recente,
estes nunca foram separados, instâncias independentes. Em O enigma do
capital Harvey evidencia a articulação promiscua entre Estado e
Mercado financeiro durante a história do capitalismo. Harvey caracteriza a
relação de nexo Estado-Finanças como o coração do sistema de crédito moderno,
base de uma estrutura de governança na qual a a “gestão do Estado para a
criação do capital e dos fluxos monetários torna-se parte integrante, e não
separável da circulação do capital”.
Vale
registrar que em momentos de crise essa relação se explícita, geralmente em
benefício do Mercado e detrimento do trabalho. O exemplo dos EUA -
para não nos alongarmos na situação européia - é emblemático a esse respeito,
despejando bilhões em salvamento de bancos em 2008 de maneira rápida e sem
consulta popular
.
Nesse
cenário o Estado como o entendemos se encontra incapacitado, para alem da
boa vontade política, de realizar uma democracia nos limites do estado
nacional, seja por determinações e limites externos ou por injunções internas
relativas a organização política tradicional com sistema eleitoral, partidos e
sindicatos. É nessa dialética entre sociedade e Estado em âmbito nacional e
Estado e Mercado globalizado que se encontram os grandes desafios nacionais
atualmente. Como se tem observado não apenas no Brasil, mas em boa parte do
mundo, a exemplo dos Eua e Europa, a resposta estatal em termos políticos tem
sido orientada direta ou indiretamente para o desmantelamento do
welfare-state, para socialização dos prejuízos a partir do endividamento do
Estado para e privatização de lucros.
A irrupção de movimentos e levantes sociais tem sido a resposta
possível da sociedade nacional ( com fontes de inspiração, aprendizagem e colaboração mundial ) organizada ou não, para fazer a face a degeneração da democracia. O movimento “surgido”por causa de 20
centavos foram apenas o ponto de inflexão de uma reflexão e experiência que já
estava em maturação: corresponde a canalização de forças e lutas antes difusas
e direcionados para lugares e fins improdutivos ( concessões de curto
prazo ) ; expressa um momento de conversão da “massa” e do “povo” em multidão, em força ativa e
criativa de singularidades que lutam pela mudança do status quo, pela reinvenção de suas vidas degradas por um sistema de transporte
privado . Eis a força da democracia em movimento, restituindo valor da luta
política , reinventando-a na prática. Democracia e liberdade andam juntas,
quando a primeira se degenera as condições de possibilidades da segunda são comprometidas. A luta
pelo passé livre é, portanto, uma luta legítima e democrática pela ampliação
das liberdades!