quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Indignação na Amazônia: O fogo da multidão em Tapauá




Recentemente fui a Canutama, Municipio do sul do Amazonas, colaborar com uma equipe do NUSEC/UFAM e CEUC em uma OPP ( Oficina de Planejamento Participativo ), momento especialmente democrático para definição do plano de gestão de uma unidade de conservação.
A cultura política da resignação e subordinação associadas ao clientelismo e mandonismo local com seus "patrões" persiste, contudo, há indícios de que vem sendo aos poucos e  cada vez mais desafiada pela multidão amazônica. Uma má notícia para os pessimistas ( autoproclamados realistas) que acreditam que nada muda nessas plagas. Por aqui também existe resistência, certamente imprecisa, “sem” objetivos bem definidos, difusa e aparentemente sem sentido, não deixa, porém, de ser um sintoma de mudanças subterrâneas que estão ocorrendo.
Minha afirmação é contextualizada, não expressa uma movimento inexorável para toda Amazônia, aliás, é sempre bom lembrar que para alem da biodiversidade, nós temos muitas amazônias em termos sociológicos, a exemplo da sociodiversidade indígena, cabocla, quilombola etc. Vou afirmar apenas o que minha experiência permite sugerir e uma sociologia das emergências na amazônia pode confirmar: lutas e resistências rurais, mas igualmente urbanas estão crescendo em vários lugares, em várias amazônias, o caso de Tapauá no sul do Amazonas é apenas um indicativo de lutas e resistências que geram novas práticas, sensibilidades e institucionalidades que, se imediatamente não geram grandes mudanças, permitem-nos vislumbrar mudanças sensíveis em um horizonte não distante.
Em Tapauá, apesar da precariedade da organização social e da tão falada “consciência política” criou um ação destituinte singular: uma revolta popular no mês passado realizou uma sistemática destruição de estruturas físicas de representação da política, prefeitura, câmara e a própria cada do prefeito foram depredados pelos moradores locais que também deram um”basta” face os desmandos políticos reinantes no Município.
Para muitos, verdadeiros vândalos, black blocs amazônicos, contudo, o fogo da multidão representou a força da política silenciado, a válvula de escape das repressões perpetradas pelas elites locais, a potencia política negada ou capturada pelas forças políticas conservadoras que fazem de tudo para manter o povo na ignorância, na dependência e subordinação. O fogo não atingiu apenas as estruturas físicas, atingiu também símbolos do mandonismo, da hierarquia família, da coerção e medo reproduzidos tradicionalmente.  A oficina de planejamento participativo, da qual participei, ocorrera algumas semanas depois do evento que reuniu na  praça principal da cidade cerca de 2 mil moradores indignados com os desmandos da política local e a corrupção sistêmica que perpassava o legislativo e o judiciário local.
            A experiência da OPP certamente significou um momento fundamental e singular de democratização, afinal, momento de politização são raros em muitos municípios do Amazonas. Alí se experiência  igualmente um fogo, este democrático, cujas chamas vinham de muitas singularidades expressas em indivíduos vindos de suas localidades e comunidade situadas no interior da Unidade de Conservação, em um tempo radicalmente outro, onde a experiência da pobreza é potencia de vida , a relação com a natureza de respeito e não de domínio/exploração, mais sustentável que qualquer “desenvolvimento sustentável”. Nessas plagas as estatísticas oficiais ( que vê apenas desvalidos e  miseráveis) e as representações intelectuais conservadores ( que vê uma massa amorfa que deve ser salva pela solidariedade dos “conscientes” ) se requalificam desde baixo e por dentro, evidenciando a riqueza de “viver bem”, para alem da renda medida pelo IBGE. Um diagnóstico recente do “territórios da cidadania” indicou que apesar de tudo o que as medidas oficiais  mostram, grande parte desses “caboclos-ribeirinhos” estão felizes e satisfeitos com aquilo que possuem.
Por fim, vale sugerir que  o fogo na casa do prefeito ( sim!, queimaram sua casa ) e a depredação de seu  novo gabinete indicam certamente um momento de efervescência política em que novos atores, práticas e experiências  ganham espaço para se consolidarem, se constituírem enquanto alternativa política. Onde antes se via apenas autodesvalia, hoje mesmo que precariamente pode-se visualizar um devir revolucionário  amazônico, um devir de construção instituinte, de alargamento da cidadania não tutelada, forjada continuamente em um processo de construção coletiva negociada, no máximo mediada por agentes que acreditam na mudança autopoiética ( que se forja autonomamente ). Como diria Paulo Freire "crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Um revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela.
            Nessa perspetiva, creio que o futuro das unidades de conservação, assim como da reinvenção política das sociedades amazônicas está na organização social, no emponderamento de suas comunidades, na qualificação política de seu conselhos, na consolidação da politicidade humana, isto é, daquela riqueza política que coloca em suspensão as limitações da pobreza material e rompe com os limites do possível, inovando possibilidades de realização histórica.
É assim que essa minúscula parte do Amazonas  se apresenta não como lugar do exótico, do inferno verde, do lugar isolado “fonte de fantasia”. Surge também, para além da natureza, como cultura e fonte de resistência. As “metamorforses” do povo em multidão que resiste também ocorre entre os “bárbaros”, aliás, sobretudo neles.


domingo, 1 de dezembro de 2013

RESENHA : IANNI, Octávio. A sociologia e o mundo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.2011. 406p.


       Em um cenário de convergências de crises em âmbito mundial, compreendendo crise fiscal, política, econômica, social e financeira, todas de alguma maneira vinculadas aos movimentos do capital no quadro da globalizacao do capitalismo, a sociologia é desafiada a renovar-se teórica, metodológica e epistemologicamente para apreender as mudanças em curso; suas raízes históricas, implicações presentes e tendências que tendem a configurar o devir do mundo. Sociologia e o mundo moderno de Octávio Ianni, um síntese de seu estilo de pensamento publicada postumamente, certamente representa um esforço sistemático empreendido durante sua trajetória para compreender os processos históricos sociais que conformaram o mundo moderno. Tal esforço se traduziu como bem indica as temáticas do livro em pauta, num empenho sempre renovado de repensar teorias, metodologias e epistemologias. Daí as diversas problematizações teórico-metodológicas em torno do funcionalismo, teoria sistêmica, dialética, etnometodologia, fenomenologia, individualismo metodológico entre outros que nos seus últimos livros, especialmente em sua trilogia sobre globalização ( A sociedade global,de 1992. Teorias da Globalização,, 1995 A era do globalismo, de 1996 ) aparecem em um síntese sofisticada ( sociologia da globalização ) para apanhar as relações, processos e estruturas que delineam os movimentos e contradições de uma totalidade emergente: a modernidade-mundo e sua sociedade global que “constituem, movem, tensionam, integram e rompem as nações e as nacionalidades, os povos e as raças, as regiões e as línguas, as fronteiras e as cartografias, as culturas e as civilizações” (p.276).
       Autor de dezenas de livros, o discípulo de Florestan Fernandos escreveu livros que se tornaram-se clássicos nas Ciências sociais brasileiras, entre os quais destacam-se "Metamorfoses do escravo", de 1962, e "O colapso do populismo no Brasil", de 1968. Em seu esforço de renovar criticamente as ciências sociais, Sociologia e o mundo moderno, vem coroar postumamente seu empreendimento teórico-metodológico com contribuições significaticas para se compreender e interpretar não só os temas e problemas da modernidade, mas simetricamente aqueles relacionados a modernidade-mundo ou globalismo com suas crises e contradições. Sim! Se a sociologia nasceu com o mundo moderno, como bem enfatiza Ianni, poderiamos igualmente afirmar que ela renasce e atualiza-se com a modernidade-mundo; com a renovaçao dos processos e estruturas que caracterizam o capitalismo contemporâneo.
       Mais especificamente sobre o livro, trata-se de um conjunto de ensaios, estudos e artigos muitos dos quais já publicados em revistas e apresentado em congressos, mas que foram revisados e sequenciados lógica e historicamente para fornecer um contributo não apenas sobre a história da sociologia e as construções teórica-metodológicas que surgiram como resposta as transformações do mundo moderno. O livro oferece igualmente um aguda problematização das condições históricas que vivenciamos atualmente; mobiliza a geografia, a filosofia, a antropologia, a ciência política e outras disciplinas das ciências sociais - tal como o artista escolhe as tonalidades para sua obra de arte - para mapear, refletir e decodificar criticamente os temas e problemas caracterizam o “ mundo da vida” e que fomentam as condições e possibilidades da “ explicação, compreensão e revelação” que se colocam em termos epistemológicos.
       Seria no mínimo empobrecedor tentar realizar uma síntese dos 16 capítulos que compõem a coletânia “ I A formação da sociologia”, “ II A tentação metodológica”, “ III Problemas de explicação”, “ IV A unidade das ciências”, “ V Positivismo e dialética”. “VI Razão e história”, “ VII Dialética e ciências sociais”, “VIII Ciência e arte”, “ IX Sociologia e história”, “ X A vocação política das ciências sociais”, “ XI O novo mapa do mundo”, “ XII A política mudou de lugar”, “ XIII As ciências sociais e a sociedade mundial”, “XIV A internacionalização da sociologia”, “ XV Formas sociais do tempo”, “ XVI Estilo de pensamento” e “ XVII Perspectiva da história”.
       No entanto, vale aqui pontuar sucintamente algumas problematizações e esclarecimentos que Ianni nos oferece sobre a conjuntura contemporânea, mesmo depois de quase 10 anos do fim de suas atividades intelectuais. Atividades traduzidas em um esforço sistemático de conceber e integrar teoria, metodologia e epistemologia como processos de uma mesma dinâmica,como partes integradas do fazer científico que
se cria e recria continuamente através da atividade e pensamento crítico da sociologia diante das “ relações, processos e estruturas” que conformam a realidade e colocam o sociólogo em estado de vigilância na realização de seu ofício.
      Em um contexto marcado por crises dos Eua à Europa, passando pelo Oriente Médio e Brasil e traduzidos em ebulições e revoltas políticas como Primavera Árabe, Occupy, Indignados, Jornadas de junho e Black Blocs, os dois últimos fenômenos manifestos no Brasil, demandam um posicionamento crítico por parte do cientista social, daí que sua pesquisa ( X A vocação política das ciências sociais ) sobre o presente não pode prescindir de um posicionamento político, afinal, como sugere Ianni a ciência social é um técnica de poder e suas pesquisas podem estar inspiradas “ seja pela convêniência de preservar o status quo político-econômico, seja pelo interesse em modificá-lo” . Sendo a pesquisa parte “ importante do processo de produção cultural”, cujo produto passa a ser parte “ da realidade social como pensamento e prática” o autor deixa claro que o ato da pesquisa em tempos de crise vai invarialmente tender para manuteção das estruturas de dominação ou para “ mudar, romper ou refazer relações e estruturas de dominação”.
       As respostas sociais expressas em termos de levantes e resistências face as crises políticas vigentes, especialmente a crise da democracia representativa, indicam uma efervescência global que ultrapassa o território, o Estado-Nação ou nacionalismo, coloca-se no âmbito do globalismo, tal como sugerido por Ianni ( XI O novo mapa do mundo). É nesse espaço global constituido pelo capitalismo mundial, enquanto modo de produção e processo civilizatório, que se realizam num pano de fundo comum as lutas e resistências contra-hegemônicas face a globalização pelo alto operada por poderosas estruturas mundiais de poder, a exemplo das grandes corporações transnacionais e organizações multilaterais, principais dinamizadores do neoliberalismo.
     Estando restritas as condições de hegemonia e soberania do Estado-Nação as condições e possibilidades de lutas sociais se alteram radicalmente e, por consequência, a política redefini-se no âmbito do globalismo ( XII A política mudou de lugar ). Nessa nova ordem global com seus novos atores e suas contradições, as classes sociais, os partidos políticos, o sindicato e os movimentos sociais entram em crise e são obrigados a mudar radicalmente seus quadros de referência política, precisamente o que ocorre em várias parte do mundo atualmente. A respeito da “ reterritorialização” da política Ianni assinala que as categorias da ciência política perdem a vigência e a realidade global torna-se carente de categorias interpretativas. 
       As ciências sociais defrontam-se com causas e crises seríssimas para serem equacionadas em termos de compreensão e interpretação, dando como exemplo a crise do principio da soberania nacional ( a atuação da Troika na Europa explicita essa crise ) e hiato crescente entre sociedade civil e Estado onde este “parece estar crescentemente determinado pelo jogo das forças sociais que operam em escala transnacional”, ao passo que, a sociedade civil não encontra ressonância representativa no Estado e não vê em suas escolhas políticas o atendimento de suas necessidades sociais . Em ambos os casos o autor assinala “ evidente a presença de injunções ‘externas’, isto é, das corporações transnacionais e das organizações multilaterais, cuja diretrizes em geral conjugam-se”. 
       Se vivo estivesse Octávio Ianni certamente oferecia sugestões e análises extramamente importantes para a conjuntura atual, assim como vislumbrou com precisão o deslocamento radical da política. “Ainda que se continue a pensar e agir em termos de soberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tanto que nacionalismo e Estado-nação, modificam-se radicalmente as condições “clássicas” dessas categorias, no que se refere às suas significações práticas e teóricas (p.228)
       É assim que a novidade dos eventos contemporâneos, com suas crises e rupturas, deve igualmente lançar as ciências sociais em sua renovação para apanhar teoricamente as mudanças da sociedade global em constituição, esta é a mensagem oferecida no capítulo ( XIII As ciências sociais e a sociedade mundial ) . É no curso das mudanças históricas e epistemológicas que “todas as formas de pensamento estão sendo desafiadas pela ruptura histórica em curso”. Talvez os levantes e lutas realizadas em várias partes do mundo nos últimos anos sejam não apenas um indicativo da renovação da política e da democracia, mas igualmente apontam para os desenvolvimentos e os impasses da modernidade. Um momento de ruptura histórica onde conceitos tais como “mercantilismo”, “colonialismo” e “imperialismo”, além de “nacionalismo” e “tribalismo”, são redefinidos face a à emergência do “globalismo”, como nova e abrangente categoria histórica e lógica.
Aí está o valor do presente livro. 
       Em um cenário em que proliferam micronarrativas e análises de desconstrução pós-moderna que so vê fragmentos de uma história presentificada, um livro que se dispõem a apanhar o movimento da história em suas tendências que lhe conferem sentido, se distingue imediatamente. Contra uma
visão fragmentada e empobrecida do real, Ianni sempre adotou o ponto de vista da totalidade. Ganha, portanto, um lugar privilegiado em um mundo com déficit explicativo onde predomina a monotônia do economicismo como elemento explicativo das crises e não como causa e expressão das mesmas. Sociologia e Mundo Moderno talvez sirva como um sopro crítico que reencante jovens pesquisadores para o desafio de pensar a complexidade da modernidade-mundo ou globalismo em sua historicidade, conformada certamente por crises derivadas das relações de dominação política e expropriação econômica, mas com horizonte sempre aberto para a realização de lutas e resistências que se orientam pela pela utopia de um mundo mais justo e democrático.
       Certamente se tornará leitura obrigatória para o curso de ciências sociais e demais áreas interessadas na compreensão dos impasses e crises que caracterizam o mundo contemporâneo.