domingo, 13 de dezembro de 2015

Ainda sobre as "luzes": Criminalização e Ambientalização da questão social em Manaus.


"Cidade das Luzes"
     
 Estou longe aqui de desconsiderar a existência ou os desafios que o crime organizado e o crime ambiental representam para cidade de Manaus. Mas optar por apresentar apenas uma face ou cor de nossa realidade é um crime contra a nossa inteligência e uma violência simbólica que visa apresentar/supervalorizar representações e interesses específicos como sendo interesses gerais, representação da maioria do povo amazonense.

Nesse sentido, as matérias locais sobre as “invasões” são complementadas e potencializadas pelo poder constituído através da narrativa do Prefeito Arthur Neto sobre a “cidade das luzes”, segundo ele um caso "Imperdoável, um hediondo crime ambiental". Mídia local e Governo Municipal em uma só nota, em uma só representação.

Primeiro a Mídia Local.

      Acompanhando as matérias de jornais locais que saíram de um ano para cá nos veículos de comunicação hegemônicos evidencia-se a precariedade/seletividade do ato de “informar” e formar a “opinião pública”. Definitivamente a ampla maioria dos artigos defende intransigentemente a propriedade privada – sem se perguntar se foi adquirida legitimamente, como algumas famílias são proprietárias de metade da cidade, se é produtiva etc... -, trata indistintamente todas as ocupações como invasões, criminaliza sem titubear os movimentos sociais que luta por moradia, enfatiza unilateralmente a dimensão da violência e do crime organizado supostamente males de um local específico que é preciso combater e, além disso enfocam e sensibilizam0-nos com ares de “consciência ecológica” os danos e crimes ambientais cometidos por tais invasões contra o patrimônio natural, público ou privado. Eis alguns títulos  e argumentos de tais artigos.

 “Líder de invasões em Manaus conta em entrevista que lucra até R$ 100 mil por ocupação”
 “Invasões avançam devastação em áreas verdes do Amazonas”
“Cerca de 25 famílias invadem área verde no conjunto Cidadão 2, na Zona Norte de Manaus”
 “Cerca de 200 famílias invadem terreno particular em ramal”
 “Invasão Cidade das Luzes se expande e continua destruindo o meio ambiente”
“Expansão urbana sem áreas verdes pode aumentar índices de temperatura, diz pesquisa”

Trechos dos artigos

"O grupo queimou colchões, madeiras e um veículo na tentativa de evitar a ação da polícia e da justiça."

"Parte da área verde, antes intacta e que deveria ser preservada, já foi destruída pelos invasores."

“Um dos problemas que faz aumentar o número de doenças,"

"A busca do homem por um lugar para morar é uma necessidade primária, porém, o ato para suprir isso pode gerar grandes impactos negativos para a natureza, caso feito desordenadamente"


Tomemos o último trecho. Será que a busca por moradia é tão terrívei quanto a ação realizada ilegalmente pelas madeireiras, pela produção de pasto, produção de monoculturas?

      Em um das matéria privilegia-se quem lucra com os negócios, lotes são vendidos aos milhares entre 2 a 5 mil reais, mas estão longe de perguntar qual a razão de tamanha demanda. O foco mesmo é no "invasor", em pessoas que lucram com o processo, no impacto ambiental causado, no desmatamento, na poluição hídrica, nos grupos criminosos.

      A palavra " invasão" é a tônica dos artigos, defesa intransigente da sagrada propriedade privada, até “entendem” que famílias precisam de moradia mas precisam "procurar os meios legais junto ao Estado", os mesmos meios legais que não usados para garantir moradia para as pessoas. Chegam ao absurdo de associar de maneira perversa “invasão” ao aumento da temperatura na cidade de Manaus.

      Em suma, focam apenas em um aspecto superficial da questão, invisibilizam o verdadeiro problema e focam apenas na "indústria da invasão" e “impacto ambiental”.

      Como se percebe explicitamente, nesses enfoques parte da realidade fica de fora, não apreendida, ou melhor apreendida seletivamente, longe de problematizar outras face do fenômeno ou se ater minimamente às suas raízes históricas vinculadas a dominação política, a expropriação econômica e às ideias dominantes que naturalizam e invisibilizam problemas e contradições.


Narrativa do Arthur Neto

      Para Arthur, que comentou sobre a “necessária” “reintegração de posse” realizada na “Cidade das Luzes” as linhas de interpretação confirmam e complementam aquela que é produzida pela mídia local.
Arthur Neto, que captou intencionalidade nos 60 hectares da cidade das luzes, argumentou que a área estava "destinada" "pela natureza" “à vida de animais, à pujança das árvores, à perspectiva do turismo gerador de receitas e divisas para o estado e para o país”.

       Não que devamos esquecer ou minimizar os problemas ambientais da cidade de Manaus, mas toma-los como prioridade absoluta à revelia das desgraçadas vidas humanas. Seu discurso se alia a um enfoque maniqueísta de “proteção da Amazônia” e “apologia da floresta” a despeito do “holocausto” social que isso produza, aspectos há muito analisados por Samuel Benchimol ao analisar a “Amazônia interior”. A única diferença é que o ambientalismo anti-humanismo chegou com força no contexto urbano, “ambientalizando” a questão social de modo arbitrário, seletivo e preconceituoso. Enquanto isso, pode-se mercantilizar, capitalizar e lucrar em cima da natureza sem nenhum problema, o que não pode é ceder terra pra “vagabundo”, ai é “vandalismo”!

      Em seu comentário Crime ambiental, tráfico de drogas e pobreza se imbricam para a boa consciência daqueles que dividem o mundo de maneira maniqueísta entre policiais e bandidos, mocinho e ladrão, crente e delinquente, preto e branco. Como se o Estado não estivesse envolvido em crimes ambientais, como se alguns  policiais não fossem mais perigosos que muitos ladrões, como se os ricos fossem éticos e conquistassem seus patrimônios honesta e meritocraticamente.

      Como em todo discurso iluminista pobreza e os subalternos aparecem como "ludibriados", "usados", tamanha seria sua incapacidade e ignorância, destituído do "mérito" de conquista honrada da propriedade privada e consciência ecológica indispensável para frear seus impulsos diante de "crime ambientais". Só faltou dizer que os “invasores” eram eleitores do PT, afinal, estes “não sabem votar” não é? Saber votar seria privilégio das classes médias esclarecidas nessa perspectiva.

Por fim, vale registrar que o nobre Prefeito afirma que a maioria dos “moradores” eram especuladores de terras. Baseado em que informações, em que pesquisa o Sr. Arthur baseia sua afirmação? Imaginem 2 mil famílias, e a “maioria” estava “especulando terras”, claro! Sem-teto tornou-se especulador de terras!

Namoro dos poderes

A narrativa do Sr. Arthur, tal como a formação da "opinião pública" pelos jornais hegemônicos locais, apanha a questão social apenas em suas aparências, ocultando suas raízes político-econômicas e afirmando ideologicamente uma explicação superficial que esconde interesses, criminaliza a pobre politica-econômica e ambientalmente, e invisibiliza demandas, direitos e necessidades reais formalmente asseguradas na constituição.


O sr. Prefeito termina seu texto conclamando a “sociedade” para uma missão ecológica da maior relevância, uma verdadeira “tarefa de solidariedade e amor": a construção de uma tábula rasa sobre o que representou a cidade das luzes para além da visão mesquinha, distorcida e unilateral da mídia hegemônica e dos poderes constituídos. O reflorestamento da área não será a redenção de nossos graves problemas sociais! E não, o prefeito não age "com verdade e boa fé para com Manaus”, de que Manaus se está falando, da que está confortável em seus lares em bairros nobres? da que não depende de transporte público para se locomover? da que não precisa ser atendida pelos SUS? Da Manaus que naturaliza os problemas sociais e culpa os “de baixo” por sua pobreza, ignorância e incompetência como se não tivesse nada a haver com as desigualdades sociais?

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